Ângela Guimarães: O ataque contra o povo negro será intensificado

A presidenta da União de Negras e Negros pela Igualdade (UNEGRO), Ângela Guimarães, coordenou a campanha de Olívia Santana (PC do B), primeira mulher negra eleita deputada estadual na Bahia nas eleições 2018.  Apesar de celebrar a vitória da professora nas urnas, a socióloga, que é acebiana, acredita que ainda há um longo caminho a ser percorrido no sentido de fortalecer o empoderamento das mulheres negras e da juventude no estado e no país como um todo.

Angela Guimarães, presidenta da Unegro. Foto: reprodução

Ex-presidenta do Conselho Nacional de Juventude e ex- Secretária Adjunta Nacional de Juventude do governo Dilma, Ângela foi empossada este ano como professora do estado da Bahia e atualmente ocupa o cargo de chefe de gabinete da Secretaria de Trabalho, Emprego, Renda e Esporte (Setre). Em conversa com a ACEB, ela compartilhou um pouco do que pensa sobre a atual conjuntura e o que deseja para o futuro, destacando a importância do “Novembro Negro”.

Confira a entrevista:

ACEB – Este ano, a Unegro completou 30 anos de articulação na luta contra o racismo, sexismo, homofobia, intolerância e racismo religioso, e todas as suas formas correlatas de manifestação. Como você avalia as conquistas relacionados a essas temáticas? Houve retrocessos ou apenas avanços?

Ângela Guimarães – O Brasil é um país de 518 anos, sendo que destes 388 vividos sob a égide da escravidão – desumanização, super-exploração do trabalho cativo num regime de intensa violência física e simbólica – que moldou toda a nossa estrutura econômica, social, cultural e de poder. Nesta trajetória, convivemos mais tempos sob regimes autoritários do que sob regimes democráticos, o que também marca indelevelmente não apenas a nossa estrutura social, mas sobretudo a subjetividade do povo brasileiro. Assim, podemos afirmar que as lutas coletivas e sociais desde o período escravocrata foram o espaço de resistência das populações africanas, indígenas e seus descendentes. Revoltas, rebeliões, fugas, suicídios, envenenamentos de senhores, quilombos, muitas foram as estratégias de resistência que contribuíram para a permanência da população negra em solo brasileiro até os dias de hoje.

Deste modo, acumulamos pontuais, porém importantes, vitórias, tais como o fim da escravidão como resultantes das lutas de resistência da população negra; o desmonte de leis discriminatórias, como a Lei da Vadiagem; a redução das perseguições ao samba e ao candomblé; o fim da proibição de negros frequentarem escolas, dentre outras. Data do período da redemocratização e do estabelecimento da Constituição Federal em 1988 importantes conquistas como a criminalização do racismo, o reconhecimento das comunidades quilombolas e a criação da Fundação Cultural Palmares. Mais recentes são as conquistas de um Ministério próprio para implementar e transversalizar a política de promoção da igualdade racial, as Ações Afirmativas nas Universidades Públicas (e sua expansão e interiorização) e concursos públicos, a criação de centenas de organismos de gestão das políticas de promoção da igualdade racial nos estados e municípios, a Política Nacional de Saúde da População Negra, o Plano Juventude Viva de prevenção à violência contra a juventude negra e a política de habitação com o Programa “Minha Casa Minha Vida”, que assegurou mais de 4,6 milhões de moradias sobretudo às pessoas de baixa renda (faixas 1 e 2). Isso sem falar no Programa “Brasil Quilombola”, na Política Nacional de Economia Solidária, na retirada de 40 milhões de pessoas da extrema pobreza (negros e negras são 78% deste contingente) e na criação de 20 milhões de empregos formais e na política de valorização do salário mínimo, que atingiu trabalhadores/as negros. Vale destacar, ainda, a regulamentação dos direitos trabalhistas das trabalhadoras domésticas com a Lei Complementar 150/2015; a criação do Prouni (bolsas parciais ou integrais em faculdades privadas), que beneficiou 62% de negros e negras do total de atendidos, dentre outras políticas públicas. Todas essas políticas públicas só são possíveis num ambiente de abertura e expansão da democracia. Após o golpe travestido de impeachment, patrocinado pelo consórcio que reuniu um congresso putrefato, um Judiciário partidarizado (“com STF com tudo…”) e a mídia monopolizada, todas essas conquistas foram pelo ralo. As medidas de Temer e que devem ser aprofundadas pelo fascista recém-eleito representam um verdadeiro retrocesso civilizatório. A CLT e a Constituição estão sendo desfiguradas em prejuízo do povo, os programas sociais desmontados, os investimentos sociais congelados por 20 anos, a miséria e o caos social e econômico amplamente disseminados. Dias terríveis nos aguardam.

ACEB – O que te motiva a lutar pela ampliação da participação de negros e mulheres nos espaços de poder?

Ângela Guimarães – É a causa de uma vida! Recebi um país melhor devido à luta daquelas e daqueles que me antecederam. De quem se rebelou e resistiu desde a escravidão até a última Ditadura Civil-militar (1964-1985). Sou nascida no dia 21 de março, o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. Meu nome é uma homenagem a Angela Davis, a grande ativista dos Pantera Negras. Sou nascida no bairro do Curuzu-Liberdade, bairro que deu origem ao pioneiro Bloco Afro Ilê Aiyê, responsável por afirmar a nossa identidade e orgulho de sermos negras e negros. Tenho em minha família ativistas da esquerda, LGBTs e da luta antirracismo.
Acredito numa sociedade em que cada pessoa possa viver plenamente sem os obstáculos do racismo, sexismo, LGBTfobias, exploração de classe e outras barreiras. Neste sentido, a luta para que a maioria da população, negros/as e mulheres tenham participação nos espaços de poder é uma luta por visibilidade, reconhecimento, representatividade, mas sobretudo uma luta para que as necessidades das maiorias sejam devidamente pautadas, discutidas e se façam presentes nas leis, políticas públicas e regulamentações que emanam do Executivo e do Legislativo. Temos hoje um Congresso com ínfimo número de mulheres, de pessoas negras, mas também minoritário em professoras/es e de representantes da classe trabalhadora, ao passo em que representantes do Agronegócio, das indústrias das armas, das Igrejas Neopentencostais, das empresas da educação privada e agora militares sobram naqueles espaços. Qual resultado desta presença majoritária de setores anti-povo? A demolição dos direitos trabalhistas, desfiguração da Constituição Cidadã de 1988, ataques racistas, machistas e LGBTbicos, criminalização dos movimentos sociais, ataques à nossa soberania nacional com a doação de nossas maiores riquezas ao capital internacional como o Pré-Sal, a Amazônia, a nossa biodiversidade e as ameaças de privatização das empresas públicas que resistiram de pé à Era neoliberal dos anos 1990s.

ACEB – Quais são os outros grandes desafios da sociedade no que diz respeito às garantias de igualdade entre as pessoas?

Ângela Guimarães – O Brasil foi uma nação forjada sob os signos da desumanização dos povos africanos e indígenas que sobrevivem a um genocídio cotidiano, inferiorização das mulheres, subalternização dos moradores do norte e do nordeste. Esta herança do escravismo e do colonialismo não vai desaparecer naturalmente, ela precisa ser exposta e enfrentada.

Durante muito tempo, quiseram nos fazer acreditar na fábula do Brasil como um país pacífico, com povo ordeiro vivendo sob uma democracia racial, tudo isso para esconder o país cruelmente racista, que subjuga e inferioriza negros, mulheres e pessoas LGBTs, nação de brutal concentração de renda, profundas desigualdades sociais, extremo controle social baseado na violência das chacinas, grupos de extermínio e milícias que atuam de forma cotidiana. Sendo assim, sem superar a herança escravista, sem dividir riquezas, sem fazer reforma agrária, urbana, tributária e política, sem democratizar os meios de comunicação, amplificar e radicalizar nos espaços de participação social, sem promover uma cultura e valores baseados no trabalho cooperativo e solidário, no respeito e convivência com a diversidade, sem a disseminação do respeito às individualidades, à liberdade de pensamento e expressão e aos direitos humanos de todas as pessoas, não será possível construir uma sociedade de paz e igualdade. Estas são tarefas ainda mais urgentes diante do resultado saído das urnas no último dia 28/10.

ACEB – Você tem dito que uma das prioridades da Unegro neste momento é o fortalecimento da luta contra os ataques aos direitos conquistados pelas mulheres, população negra, LGBT e juventude. Através de que ações práticas a organização política do Movimento Negro que você preside se posiciona em defesa dessas causas?

Ângela Guimarães – A Unegro, enquanto entidade política do movimento social, avalia como catastrófico o resultado eleitoral de 2018 quando um projeto ultra conservador, ultraliberal, xenofóbico, declaradamente racista, misógino e anti-povo saiu vitorioso das urnas. Desde o golpe de 2016 já estamos ocupando diuturnamente as ruas, ampliando a organização de base nos bairros e cidades do interior, organizando materiais de comunicação físicos e nas redes, ampliando o diálogo com setores do movimento social e com parcelas do povo justamente para furar o bloqueio midiático que blindou o Governo Temer e facilitou seu caminho de desmonte do país. Além deste bloqueio midiático, outro fator limitador tem sido a ampla maioria deste Governo no Congresso Nacional, o que tem facilitado e até acelerado o desmonte dos nossos direitos e a venda do nosso patrimônio nacional.

ACEB – Em que medida o resultado das últimas eleições define o rumo das mobilizações que a Unegro apoia, tais como as Frentes Brasil Popular, Povo Sem Medo e Convergência Negra, que reúnem entidades do movimento negro brasileiro? Como a população negra, classe trabalhadora, mulheres, povo da cultura, movimento estudantil e hip hop devem se posicionar a partir de agora, em sua opinião?

Ângela Guimarães – O resultado eleitoral foi catastrófico! O nível de ataques contra a população negra e todo povo brasileiro será intensificado. O desmonte do país idem. A democracia será ainda mais aviltada. O Projeto ultradireitista já iniciou sua caçada às professoras/es que exercitam o livre pensar e o debate crítico nas escolas e universidades. Não existirá imprensa livre, pois quem falar mal do governo será censurado e calado. O futuro governo já declarou opositores e ativistas dos movimentos sociais, “os vermelhos”, como inimigos a serem presos ou expulsos do país e já se comprometeu a privatizar as empresas públicas (Correios, Bancos Públicos, Petrobrás, Eletrobras, dentre outras), a sepultar em definitivo a CLT, a promover uma guerra contra servidores/as públicos, retirando nossos direitos e a estabilidade…. Neste contexto a resistência popular pelos movimentos sociais ganha outros contornos. A luta de resistência será ainda mais intensificada. Passeatas, ações judiciais, incidência parlamentar, denúncias em tribunais internacionais, mobilização da imprensa local e internacional, apoio de ativistas internacionais, todos os recursos serão utilizados para desnudar diante do povo as reais intenções e compromissos deste governo com os poderosos daqui e do exterior, seus intentos fascistas, sua violência elevada a grau máximo de política de Estado, seu descompromisso em resolver os reais problemas do povo. Será uma luta de longa duração!

ACEB – Nesse contexto, qual a importância do mês de conscientização da consciência negra (novembro) e do Dia escolhido para esta celebração (dia 20)? A Unegro realizará ações especiais durante o Novembro Negro? Quais?

Ângela Guimarães – O Mês da Consciência Negra é uma conquista do Movimento Negro na sua dura luta de desconstrução do mito da democracia racial e pela afirmação da contribuição da população negra na formação do Brasil. Celebra toda a genialidade, liderança e capacidade política, organizativa e guerreira da população negra, que tem resistido através dos séculos ao projeto genocida das elites nacionais e internacionais. Rememora Zumbi dos Palmares e toda a saga do Quilombo dos Palmares como uma organização societária, econômica e política alternativa ao Brasil escravista, atrasado, dos impérios familiares, subserviente à Europa.

Embora o Movimento Negro desenvolva ações políticas e informativas durante todo o ano, em novembro essa agenda se acentua. São realizados um sem-número de palestras, seminários, aulas públicas, mostras de vídeos, feiras, mostras artísticas e culturais, debates e lançamentos de livros, Marchas, Caminhadas e Lavagens. A Unegro realizará a 10ª Edição da Lavagem da Estátua de Zumbi dos Palmares no próximo dia 20 a partir das 9h em frente à estátua de Zumbi, na Praça da Sé, em Salvador. Esta lavagem busca reafirmar a memória e o legado de Zumbi e Dandara dos Palmares, reiterar a resistência negra, ser uma atividade informativa para estudantes e professoras/es das escolas públicas e da população em geral que acompanha e participa, além de ser um espaço aberto às manifestações dos movimentos sociais e exposição das suas bandeiras nas lutas contra o racismo, intolerância religiosa, machismo, LGBTfobia, denúncia do Estado de exceção, das violências simbólicas, das desigualdades estruturantes. Acima de tudo, queremos abrir um espaço de convergência da resistência negra, indígena e popular.

ACEB – Como você imagina a sociedade ideal no que tange à igualdade de direitos e oportunidades a despeito das diferenças entre as pessoas?

Ângela Guimarães – Eu sou uma pessoa socialista por formação e convicção. Ainda acredito no raiar de um novo tempo para o nosso povo, onde as pessoas se amem e se respeitem independente da cor das nossas peles, do nosso gênero, da forma como exercitamos a nossa religiosidade e a nossa sexualidade, da região do país em que moramos. Sigo os ensinamentos de Nelson Mandela, que acreditava na educação como a arma mais poderosa de transformação do mundo! Acredito num Estado que promova o desenvolvimento e toda a potencialidade dos seres humanos e que assegure o nosso direito às liberdades civis, políticas, individuais e coletivas. Acredito num tempo em que não haverá famílias famintas e pessoas em situação de rua, mas que também a riqueza não estará concentrada nas mãos de 6 famílias, como ocorre atualmente. Quero um Estado onde não exista a miséria de milhões para sustentar a ganância, o luxo e o fausto de alguns. Um tempo em que não exista uma classe que não dorme com medo da revolução social dos que não comem, conforme nos ensinou o grande mestre Milton Santos. Acredito e luto por uma ordem social onde exista solidariedade em lugar da competição, compaixão no lugar do descaso, respeito no lugar da intolerância, compreensão e diálogo no lugar do ódio e da violência. Acredito, sem inocência, que é necessário e urgente este tempo, o tempo da felicidade para toda a humanidade.