Bolsonaro: três hipóteses sobre o êxito eleitoral do candidato fake

O doutor em Ciências políticas pela Harvard University e professor de Filosofia Politica da Universidade de Buenos Aires, Atílio Borón, levanta algumas hipóteses para tentar entender o sucesso de Jair Bolsonaro (PSL) no primeiro turno das eleições presidenciais do Brasil.

Bolsonaro - Divulgação

Para o analista, trata-se de um projeto arquitetado pela burguesia nacional, em parceria com interesses estrangeiros, para retomar o poder mesmo que seja com um candidato “imprevisível” como Bolsonaro, uma vez que os líderes tradicionais da direita perderam totalmente a popularidade.

Diante das sucessivas vitórias do campo progressista nas últimas quatro eleições, a direita colocou em ação o plano de retorno ao poder desrespeitando as regras do jogo, mas usando as ferramentas institucionais: depôs a presidenta eleita, condenou o ex-presidente que seria favorito nestas eleições o proibiu de concorrer à corrida presidencial. O resultado disso é uma eleição totalmente atípica, marcada pelo fenômeno das fake news e episódios de violência.

Leia trechos do artigo:

A surpreendente performance eleitoral de Jair Bolsonaro no primeiro turno das eleições presidenciais do Brasil levanta numerosas interrogações.

Surpreende a meteórica evolução das intenções de voto até chegar a arranhar a maioria absoluta. E não foi o atentado que lhe deu a possibilidade de ganhar no primeiro turno. Vejamos: nos últimos dois anos sua intenção de votos flutuou em torno de 15%. Ele poderia ser considerado um “outsider”, não fossem seus mais de 25 anos como deputado federal (dos quais só aprovou dois projetos). Trata-se apenas de um impostor astuto, nada mais.

No começo de julho deste ano as intenções de voto em Bolsonaro eram de 17%, em 22 de agosto a Datafolha apresentou uma pesquisa em que este número subia para 22%. Em 6 de setembro ele sofreu o atentado e poucos dias depois as preferências de voto cresceram rapidamente até alcançar cerca de 24%, e apenas algumas semanas depois subiram para 26%. Em resumo: um módico aumento de 9 pontos percentuais entre o começo de julho e meados de setembro. Mas faltando poucos dias para as eleições as intenções de voto subiram para 41% e nas eleições ele obteve 46% dos votos válidos. Ou seja, praticamente duplicou seu caudal eleitoral. Como explicar este irreversível crescimento de um personagem que durante quase 30 anos jamais havia saído do sótão da política brasileira?

Bolsonaro teve êxito em aparecer como o homem que pode restaurar a ordem em um país que, segundo afirmam os porta-vozes do establishment, foi destruído pela corrupção e a demagogia instaurada pelos governos do PT e cujas sequelas são a insegurança pública, a criminalidade, o narcotráfico, os subornos, a revolta das minorias sexuais, a tolerância diante da homossexualidade e a degradação do papel da mulher, extraída de seus papeis tradicionais.
O escândalo da Lava Jato e o desastroso governo de Michel Temer acentuaram os pontos mais negativos desta situação, que na percepção dos setores mais conservadores da sociedade brasileira chegou a extremos inimagináveis.

Em um país onde a ordem é um valor supremo – vale lembrar que a frase estampada na bandeira do Brasil é “Ordem e Progresso” – e que foi o último a abolir a escravidão no mundo, a “desordem” produzida pela corrupção de massas plebeias desata nas classes dominantes e nas classes médias subordinadas à sua hegemonia uma incandescente mescla de pânico e ódio, suficiente para fazê-las explodir em apoio de quem quer que seja percebido com as credenciais necessárias para restaurar a ordem subvertida. No deserto lunar da direita brasileira, que concorreu com seis candidatos à eleição presidencial e nenhum superou 5% dos votos, nada melhor que o inescrupuloso e transgressor Bolsonaro, capaz de infringir todas as normas políticas para executar esta tarefa de limpeza e remoção de legados políticos contestatório.

O ex-capitão do Exército escolheu como companheiro de chapa Antônio Hamilton Mourão, um general afastado muito reacionário, que apesar de suas origens indígenas acha necessário “branquear a raça” e não teve travas na língua para afirmar que “o Brasil está tomado por uma herança fruto da indolência dos indígenas e do espírito desonesto dos africanos”. Ambos são, de forma resumida, a reencarnação da ditadura militar de 1964, mas catapultada ao governo não pela prepotência das armas mas pela vontade de uma população envenenada pelos grandes meios de comunicação e que, até agora, faltando duas semanas para o segundo turno, parece decidida a votar em seus verdugos.

Agora bem, porque a burguesia brasileira se inclinou a favor de Bolsonaro? Algumas pistas para entender esta deriva são apresentadas por Marx em uma brilhante passagem do livro “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte: “em meio desta confusão indizível e barulhenta de fusão, revisão, extensão dos poderes, constituição, conspiração, coligação, emigração, usurpação e revolução, o burguês, ofegante, grita como um louco por sua república parlamentar: ‘Antes um fim terrível do que terror sem fim’”.

Poucas analogias históricas podem ser mais esclarecedoras que esta para entender o súbito apoio das classes dominantes brasileiras – enfurecidas e espantadas pelo enfraquecimento de uma secular hierarquia social ancorada nos legados da escravidão e da Colônia – a um psicopata imprevisível como Bolsonaro. Ou, para entender o aumento da Bolsa de São Paulo logo após a vitória dele no primeiro turno, e o júbilo da mídia canalha, encabeçada pela cadeia da Globo. Todo este bloqueio dominante suplicou, ofegante e como louco, que alguém viesse a dar fim a tanto descalabro. E aí está Bolsonaro.

E é como observa Antonio Gramsci em uma célebre passagem de seus Cadernos, em situações de “crises orgânicas”, quando se produz uma ruptura na articulação que existe entre as classes dominantes e seus representantes políticos e intelectuais (os já mencionados acima, nenhum dos quais obteve sequer 5% dos votos) a burguesia e suas classes aliadas rapidamente abrem mão de seus porta-vozes e operadores tradicionais e correm em busca de uma figura providencial que lhe permita sortear os desafios do momento.

“O caminho das tropas de muitos partidos sob a bandeira de um partido único que melhor representa e retoma os interesses e as necessidades da classe em seu conjunto” – observa o italiano – é um fenômeno orgânico e normal, ainda quando seu ritmo seja rapidíssimo e quase fulminante por comparação aos tempos tranquilos do passado: isso representa a fusão de todo um grupo social (as classes dominantes) sob uma única direção concebida como a única capaz de resolver um problema dominante existencial e barrar um perigo mortal”.

Isso foi precisamente o que ocorreu no Brasil uma vez que suas classes dominantes comprovam a obsolescência de suas forças políticas e lideranças tradicionais, a bancarrota de Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer, Aécio Neves, José Serra, José Sarney, Geraldo Alckmin e companhia, o que as levou à busca desesperada do providencial messias exigido para restaurar a ordem desequilibrada pela demagogia petista e a insubmissão das massas e que, por sua vez, vai lhes permitir ganhar tempo para se reorganizar politicamente e criar uma liderança política mais ao tom de suas necessidades sem o risco de imprevisibilidade inerente a Bolsonaro.

Mas toda essa movimentação, a segunda etapa do golpe institucional, cuja primeira fase foi a destituição de Dilma Rousseff, deveria culminar na detenção e condenação ilegal de Lula e sua proibição de ser candidato, única forma de frustrar seu retorno garantido ao Palácio do Planalto. O efeito combinado de uma justiça corrupta e os meios de comunicação cuja missão não é outra além de manipular e “formatar” a consciência do grande público garantiu este resultado e, sobretudo, o silêncio nas próprias filas de simpatizantes e militantes petistas que só em escasso número se mobilizaram e tomaram as ruas para impedir a consumação desta manobra.

A cumplicidade da justiça eleitoral em um processo que tem grande schances de desembocar no desmonte da democracia brasileira e na instauração de um novo tipo de ditadura militar é tão imensa como inocultável. Juízes e promotores, com a ajuda dos meios de comunicação, arrasaram os direitos políticos do ex-presidente, o frecharam física e midiaticamente em seu cárcere em Curitiba ao proibir que ele gravasse áudios e vídeos para a apoiar a chapa Haddad-Manuela e inclusive vetaram a realização de uma entrevista que seria ancorada pela Folha de São Paulo. Em termos práticos, a justiça foi um braço a mais de Bolsonaro e os pedidos ou reclamações de seu comitê de campanha em questão de horas eram convertidos em aberrantes decisões judiciais. Por isso a justiça, os meios e os legisladores corruptos que deram aval a todo este fraudulento processo são os verdugos que estão a ponto de destruir a frágil democracia brasileira, que em trinta e três anos não pode se emancipar da permanente chantagem da direita e seu instrumento militar.

Nem precisa dizer que este perverso tripé reacionário e bastião antidemocrático é convenientemente treinado e promovido pelos Estados Unidos através de numerosos programas de “boas práticas” onde se ensina aos juízes, promotores, legisladores e jornalistas da região a desempenhar suas funções de maneira “apropriada”. No caso da Justiça um de seus mais dedicados alunos é o juiz Sérgio Moro, que perpetrou um colossal retrocesso do direito moderno ao condenar Lula à prisão não por provas – as quais ele não tinha, como ele mesmo admitiu – mas por sua convicção de que o ex-presidente era culpado e havia recebido um apartamento como parte de um suborno.

Condenação sem provas, fundamentada na convicção do juiz! A legião de jornalistas que mentem e difamam diariamente em todo o continente latino-americano também são treinados nos Estados Unidos para fazê-lo “profissionalmente”, o que seria uma versão civil da tristemente célebre Escola das Américas. Se antes, durante décadas, se treinou os militares latino-americanos para torturar, matar e desaparecer com cidadãos e cidadãs suspeitos de ser um perigo para a manutenção da ordem social vigente, hoje se treina juízes, promotores e “parajornalistas” (tão letais para as democracias como os “paramilitares”) para mentir, ocultar, difamar e destruir a quem não se curve às ordens do império. O mesmo acontece com os legisladores, e em certa medida com os acadêmicos.

O fio condutor deste artigo revela a trama de uma gigantesca conspiração elaborada pela burguesia local, o imperialismo e seus personagens nos meios de comunicação e na politica que vai desde a destituição ilegal de Dilma, passando pela não menos ilegal condenação de Lula até a emissão, dias atrás, dos falsos certificados médicos que permitem ao medíocre Bolsonaro renunciar aos debates que, com certeza, o fariam perder muitos votos.