A política desigual da República das Letras

Pascale Casanova analisa as forças que legitimam ou não os escritores

Pascale Casanova

Morreu no sábado (29/9) a crítica literária Pascale Casanova, autora do livro A República Mundial das Letras. Orientanda de Pierre Bourdieu, esse trabalho de Pascale Casanova, publicado na França em 1999, tornou-se uma referência mundial para pensar as forças culturais e sociais que atuam no processo de legitimação de cada autor.

O texto abaixo foi publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo em 17 de março de 2002, quando a crítica esteve no Brasil e pude entrevistá-la, por telefone.

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A globalização põe em risco o mais internacional dos mundos: o da literatura. É o que afirma a crítica francesa Pascale Casanova, que está no Brasil para lançar A República Mundial das Letras (Estação Liberdade, 440 págs.).

Na terça-feira, às 19h, ela participa, com a professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Leda Tenório da Mota, do Café Literário da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, para discutir o tema das revoltas literárias, tomando o exemplo de Macunaíma, de Mário de Andrade. Na quarta, conferencia em Brasília, às 15h, no Complexo Cultural do Ministério da Cultura.

Para Pascale, a internacionalização do mundo literário se deu em oposição às forças do mercado. A predominância da dimensão econômica sobre a criação artística, crê, jogaria por terra um modo de pensar a literatura, algo que resume numa equação: Paulo Coelho e seu sucesso no mercado editorial colocam em risco a obra de Guimarães Rosa.

Em A República Mundial das Letras, Pascale procura mostrar os mecanismos de legitimação da produção literária. Esse espaço "universal", acredita, é construído a partir de rígidas hierarquias, violências, coerções e complexos jogos políticos, com discursos dominantes e discursos de revolta, potências literárias e literaturas dominadas, contando inclusive com "capitais": cidades que concentram tradutores e críticos, responsáveis pela criação de valor literário.

"As dominações econômicas e políticas são bastantes descritas; quis mostrar como funciona a dominação literária", afirmou, do Rio, onde esteve na semana passada. "Conhecer essas leis pode ajudar, especialmente os escritores que não estão no centro, a agir contra elas", acredita.

Pascale Casanova acha que o fato de o Brasil nunca ter tido um nome premiado pelo Nobel é uma das mostras de que o mundo da literatura não é harmonioso. "O fato de o Brasil utilizar uma língua de uma potência literária marginal é um dos motivos para isso", diz, e cita Rosa como um injustiçado pela Academia Sueca.

Apesar de haver essa república mundial, diz Pascale, a história da literatura ainda é contada a partir da história nacional. "Escritores como Arno Schmidt, Rosa e James Joyce não são lidos em conjunto", explica. "A história tradicional da literatura não é falsa, é, talvez, cega, é preciso trocar os óculos para enxergar além das fronteiras nacionais."

Vulgares

A formação dessa república das letras remonta ao Renascimento e à utilização crescente pelos escritores de línguas vulgares (e não mais o latim) – algumas dessas línguas populares acabam por se impor como nacionais, como o caso do francês.

Pascale narra essa trajetória de mais de 500 anos e, assim, busca dar uma história a esse movimento que, "contra as fronteiras nacionais que produzem a crença política (e os nacionalismos)", resultou numa geografia e recortes próprios. Em mais uma analogia econômica, afirma que as capitais literárias são uma espécie de 'bancos centrais' específicos.

A grande capital literária mundial, até 1960, afirma, foi Paris. Lá os escritores encontraram refúgio político e intelectual, mas principalmente força simbólica para justificar suas criações e suas ideias. Um dos casos mais importantes que narra é o nascimento do modernismo de língua espanhola, a partir da obra do poeta Rubén Dario.

Ao mesmo tempo em que Dario buscava na França os ideais e os "modelos para romper com a tradição espanhola, dinamarqueses como Jens Peter Jacobsen e noruegueses como Ibsen viam na influência francesa uma maneira de se libertarem da alemã.

"A única maneira de recusar a norma literária londrina (ou de recusar sua condenação ou sua indiferença) para um irlandês por volta de 1900 (como Joyce), para um americano por volta de 1930, o único meio para um nicaraguense por volta de 1890 (como Rubén Dario) se desviar das normas literárias espanholas, para um iugoslavo por volta de 1970 (como Danilo Kis) recusar a influência das normas literárias impostas por Moscou, para um português (como António Lobo Antunes) por volta de 1995 sair de um espaço nacional coercitivo, é voltar-se para Paris. Seus veredictos são os mais autônomos (os menos nacionais) do universo literário, e constituem portanto um último recurso."

Se há um recurso último, outros existem. Um dos exemplos citados pela autora no livro é a relação entre a literatura africana de língua portuguesa e a brasileira. Citando o angolano José Luandino Vieira e o moçambicano Mia Couto, escreve que eles "recorrem doravante aos recursos literários brasileiros para recusar a ascendência dos modelos europeus e constituir uma genealogia e uma história literárias próprias".

Em situação pior encontram-se os autores de ex-colônias francesas: "Os escritores confrontados com esse dilema esboçaram algumas soluções, entre elas, a acrobacia teórica das 'duas Franças'. A crença em uma pretensa dualidade da França – 'a França colonizadora, reacionária, racista, e a França nobre, generosa, mãe das artes e das letras, emancipadora, criadora dos direitos do homem e do cidadão'", escreve, citando um trabalho de Raphaël Conflant sobre Aimé Césaire. Mais à frente, lembra que "alguns, como os escritores antilhanos (Édouard Glissant, Patrick Chamoiseau ou Raphaël Cortfiant) ou argelinos (Rachid Boujctjedra) reivindicam o modelo de Faulkner para escapar à onipotência francesa; outros, como o guineano Tiemo Monénembo, declaram explicitamente sua dívida para com os latino-americanos – e principalmente para com Octavio Paz -, e proclamam sua liberdade criadora".

Isso, na opinião de Pascale, "é apenas um desvio", porque Faulkner, Paz e o conjunto de escritores da América Latina foram consagrados em Paris, e "reivindicá-los é ainda reconhecer o poderio específico de Paris".

Essa capacidade parisiense de ajudar a "revolucionar os espaços nacionais" de onde saíram os escritores, que Pascale Casanova defende, gera certa desconfiança. Não seria apenas a manifestação do nacionalismo da autora, que, afinal de contas, é francesa? Pascale responde que, durante sua pesquisa, ficou impressionada com a influência de Paris sobre escritores de todo o mundo; no livro, ela escreve que se criou uma Paris absolutamente idealizada, a partir das descrições de escritores da cidade ou não.

Mas "Paris não é uma capital literária francesa, é antes de tudo uma capital internacional", argumenta. "Há razões históricas para isso", acha, unir a tradição que remonta à Revolução Francesa e às insurreições populares do século 19.

Depois dos anos 1960, Paris vem enfrentando a concorrência de capitais emergentes, especialmente Londres e Nova York. Mas Pascale acredita que a cidade francesa continua a desempenhar um papel de "capital das pequenas literaturas" – "sempre entre aspas", frisa. "É a cidade em que se continua a traduzir línguas pouco conhecidas", diz. "E é onde pode existir urna Internacional dos escritores, mas isso depende de eles acreditarem na possibilidade de Paris de assumir o papel".

A primeira parte do livro é dedicada ao jogo, enquanto a segunda, aos jogadores. Uma das oposições que estabelece é entre os escritores nacionais e os internacionais. Mário de Andrade é um dos citados por Pascale Casanova como um autor que não ultrapassou a barreira nacional, mas seu Macunaíma seria um exemplo de ruptura tanto com uma potência política (Portugal) quanto com uma literária (a França).

Outra divisão que faz é entre os revoltados, os revolucionários e os assimilados. Nesse último grupo inclui V.S. Naipaul, nascido em Trinidad e de origem indiana – cuja premiação com o Nobel, em 2001, considera "um escândalo" e uma escolha política, logo após os atentados de 11 de setembro. "Penso que é um autor totalmente integrado, que quer ser mais inglês que os ingleses, uma espécie de modelo de 'bom escritor' colonizado, que defende o colonizador, literária e estilisticamente, ele nada inventou e boa parte de sua obra é apenas jornalística."