Ela, sim!

Hoje, 05 de outubro, a Constituição de 1988 chega aos seus 30 anos. Norma fundamental de um Brasil que pretendia superar o passado de arbítrio e desigualdade, ela foi chamada de “Cidadã” por comportar em si a mais ampla garantia dos direitos individuais, coletivos, políticos, econômicos, sociais e culturais da história do país. Justamente por isso, ela é atacada desde seu nascimento.

Por Alexandre Ganan de Brites Figueiredo*

Constituição 30 anos - Ilustração: Tainan Rocha

Uma constituição é o resultado de um momento de fundação de um novo ordenamento jurídico e político. Por isso, também é, por si só, uma ruptura. Ao mesmo tempo em que traz a dimensão do futuro, ela rompe com um passado que deseja superar. Nas entrelinhas dos dispositivos da Constituição de 88 podem ser encontrados tanto o projeto de um Brasil democrático como as adversidades que estão em seu caminho.

Ao inaugurar o Estado Democrático de Direito, a Constituição Cidadã pretendeu expurgar um passado de arbítrio, cuja marca colonial e escravocrata ainda estava (como está) entranhada na sociedade. 1988 foi um compromisso com um novo pacto, a busca da ruptura definitiva com a colônia, a escravidão, a autoritarismo, a pobreza do povo e com um modelo de Estado construído para muito poucos.

Esse compromisso possui duas dimensões, uma dependente da outra. A primeira é a ruptura com o Estado ditatorial em termos políticos, por meio da afirmação da separação de poderes, de garantias processuais, da soberania do voto, do pluripartidarismo, dos mecanismos diretos de participação popular (plebiscitos e referendos) e da extensão do direito de voto aos analfabetos. Nunca o eleitorado brasileiro havia sido tão grande. Nunca uma constituição brasileira havia garantido tantas defesas contra o arbítrio.

A segunda dimensão do pacto de 88 foi a social. Entre os objetivos da República foram elencados a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, o bem estar de todos, sem qualquer tipo de preconceito ou discriminação, e a erradicação da pobreza. Além disso, e coerentemente, foram constitucionalizados os direitos sociais e trabalhistas.

Esses objetivos fundamentais devem orientar tanto a legislação como o comportamento dos agentes do Estado e da própria sociedade: essa é a determinação do texto constitucional. Um novo pacto político, instituindo a democracia e o Estado de Direito, seria nulo se também não buscasse uma nova sociedade, justa e igualitária.

Claro que uma Constituição não é o bastante para mudar a realidade da vida. Embora seja formalmente a norma maior, da qual derivam todas as outras, ela não pode evitar uma tensão entre os valores e princípios que promove e a realidade social e política à qual ela se destina. Mas ela é sim um compromisso que determina os princípios elementares para a construção do futuro.

Essa tensão entre o projeto e a realidade do agora, entre a escultura e a pedra bruta, é inevitável porque a Constituição não se volta exclusivamente para o hoje. Ela transcende o tempo presente e indica uma direção. É tarefa política do Estado (não de um partido, ou de um grupo qualquer) e da cidadania efetivar construção social e institucional desse projeto. Tudo, absolutamente tudo, que caminhe na direção contrária ataca a essência do compromisso firmado na Constituição.

Desde 1988, há forças atuando contra esse compromisso e contra o que ele representa enquanto possibilidade de um país que garanta cada vez melhores condições de vida e mais direitos para o povo. Há os que se batem pela conservação da pedra bruta, pelo passado, e não pelo futuro que nossa Constituição almeja. No embate político, é necessário distinguir com clareza quem disputa dentro do projeto constitucional, legítimo e legal, e quem não.

O drama enfrentado em 1988 era tanto a inexistência de uma cidadania ativa (até então calada, perseguida e impedida pelas forças do Estado) como o abismo social. Justamente por trazer em si essas duas dimensões, nossa Constituição foi atacada desde sempre pelas forças do atraso e da escravocracia que ainda vivem dentro da República.

Ainda durante os trabalhos da Assembleia, a preocupação dessas forças do atraso com o que consideravam ser um “excesso” de direitos era manifestada. Durante a década de 1990, essa crítica foi novamente colocada sobre a mesa pelos governos tucanos e seu projeto de desmonte do Estado. Os direitos causam pavor na elite e em seus funcionários.

Hoje, ecoando esse mesmo atraso e o mesmo arbítrio, não é à toa que vem de Bolsonaro e de seus apoiadores o ataque aberto aos direitos sociais que nem deveriam estar em questão. Mas estão! Toda a proteção que a Constituição formalmente garante e que exige ainda sua efetivação está ameaçada.

Declarações contrárias a direitos estabelecidos, como a educação e saúde pública para todos ou o 13º salário, são a continuação do ataque do governo de Michel Temer e sua “PEC dos Gastos”. Temer conseguiu, com aquela medida, congelar por 20 anos o investimento estatal em educação e saúde. Bolsonaro agora vem falar em restrições a esses mesmos direitos e ainda na extinção de outros. Como é possível dizer que isso esteja de acordo com a promoção do bem estar, a superação da pobreza e o desenvolvimento nacional, como manda a Constituição?

Bolsonaro é a continuidade do mesmo retrocesso que Temer representa, ambos dispostos a rasgar o compromisso político e social firmado após a última ditadura. Não à toa: o arbítrio e as mazelas sociais defendidas por eles são aquilo contra o que a democracia e o Estado de Direito projetado em 1988 se opuseram com veemência.

A Constituição faz 30 anos, às vésperas de uma eleição em que o atraso e o pior do passado do país se apresentam sem máscaras e sem pudores. Um voto contra eles é um voto a favor da Constituição Cidadã, a mais importante e plenamente democrática Carta de direitos que o povo brasileiro já teve em mãos. Ela sim!