Nova corrida espacial: de olho nas fronteiras da guerra cibernética

Recentemente Donald Trump anunciou, primeiro em tom de bravata e, em seguida, seriamente, investimentos estatais para criação de uma divisão espacial para as forças armadas estadunidenses. Conforme o vice-presidente, Mike Pence, a sexta divisão das forças armadas dos EUA deverá ser organizada até 2020

Por Rita Coitinho *

Shenzhou 11 Tiangong 2

O que parece delírio para muitos reflete, na verdade, a já antiga prioridade dos EUA com a “segurança”, princípio basilar da política externa do país, em torno do qual ergueu-se o poder do complexo industrial e militar estadunidense. Longe de preparar um exército intergaláctico ao estilo de “Star Wars”, os EUA buscam meios de garantir sua supremacia militar, hoje fortemente ameaçada pela enorme capacidade russa (e, muito em breve, também chinesa) de neutralizar a força dos adversários por meio da interferência nos sistemas de comunicação.

A guerra na Síria tem sido o principal palco das novas estratégias de guerra informacional, e tem sido cada vez mais difícil para os EUA utilizar plenamente seus sistemas de controle de veículos aéreos e mísseis, em razão das ações das forças russas sobre as comunicações. Conforme a revista Foreign Policy, “Daniel Goure, expert em segurança nacional e questões militares no Lexington Institute, afirma que os novos sistemas de guerra eletrônica da Rússia são sofisticados. Eles podem ser montados sobre grandes veículos ou aeronaves e podem atingir alvos a centenas de quilômetros”. Ao interferir nas comunicações militares, os russos têm conseguido impedir ataques das forças dos EUA ou, mesmo, fazê-los errar o alvo, o que traz grande perigo para as tropas estadunidenses e seus aliados. Ainda de acordo com Goure, na mesma revista, “o problema da guerra eletrônica, de maneira geral, é que ela pode de fato interferir na sua visão do espaço de combate, sua visão operacional, causando erros verdadeiramente horríveis”.

No comunicado da Casa Branca acerca da nova ofensiva espacial estadunidense, as preocupações com “adversários” externos não são minimizadas: “Infelizmente, potenciais adversários reconhecem a importância do espaço para o nosso país e estão desenvolvendo ativamente maneiras de negar o uso do mesmo numa crise. O diretor de Inteligência Nacional alertou que vários países, incluindo a Rússia e a China, estão desenvolvendo armas antissatélite destrutivas e não destrutivas que podem entrar em operação dentro de alguns anos. A comunidade de segurança nacional dos Estados Unidos reconhece a necessidade de desenvolver novas tecnologias para o espaço, a fim de defender-se de uma crescente gama de ameaças”.

Samir Amin, estudioso dos movimentos do mundo – que nos deixou órfãos de sua lucidez neste domingo -, insistia em que a principal orientação da política externa dos EUA era a extensão da “Doutrina Monroe” (que preconizava um continente americano reservado aos interesses dos EUA) para todo o globo. Desta orientação central é que partem, acessórias, todas as demais linhas de atuação da política externa estadunidense. Conforme ele, “A iniciativa de estender a Doutrina Monroe a todo o planeta, em toda a sua demente e mesmo criminosa falta de medida, não nasceu da cabeça do Presidente Bush filho, para ser posta em prática por uma junta de extrema direita que chegou ao poder por uma espécie de golpe de Estado como consequência de eleições duvidosas (…) Este é o projeto que a classe dirigente dos Estados Unidos concebe depois de 1945 (…) O projeto atribuiu sempre um papel decisivo a sua dimensão militar – estratégia militar global, dividindo o planeta em regiões e delegando a responsabilidade do controle de cada uma delas a um US Military Command. Volto aqui a recordar o que escrevi antes da queda da URSS acerca da posição prioritária que ocupava o Oriente Médio nesta visão estratégica global. O objetivo não era somente encerrar em um círculo a URSS (e a China), mas também dispor dos meios que fariam de Washington o dono absoluto de todas as regiões do planeta. Dito de outro modo, estender a todo o planeta a Doutrina Monroe, que efetivamente outorgava aos Estados Unidos o direito exclusivo sobre o Novo Mundo de acordo com o que eles definiam como seus interesses nacionais. (…). Desta maneira, a soberania dos interesses nacionais dos Estados Unidos era colocada acima de todos os outros princípios que delimitavam os comportamentos políticos considerados como meios legítimos, desenvolvendo uma desconfiança sistemática frente a todo o direito supranacional” (Samir Amin, Geopolítica do Imperialismo Contemporâneo. Revista Novos Rumos, no45).

Desde que este texto de Samir Amin foi escrito (2006) as tecnologias avançaram, alguns dos atores perderam espaço, outros se fortaleceram, porém no essencial a orientação da política externa dos EUA não se modificou, ainda que, na forma, os métodos e declarações pouco polidos de Donald Trump possam fazer crer que destoa dos outros governos estadunidenses. Em alguns pontos e métodos, de fato destoa. Porém a busca permanente pela supremacia militar e pelo domínio do globo seguem no topo da lista de prioridades do Poder estadunidense. Diante disso, e em razão dos avanços das outras potências, especialmente Rússia e China – que substituem a URSS, nos dias de hoje, como “inimigo principal” – no controle das informações e seus avanços recentes e futuros nas tecnologias de uso e fabricação de satélites – bem como a expansão de parcerias, como a recente cooperação China-Argentina para lançamento de satélites – faz-se necessário que os EUA lancem-se em uma nova corrida espacial, ampliando o montante de recursos destinados a essa nova frente e dando sobrevida ao complexo industrial-militar, o poder por trás do poder da grande potência mundial.