País escorrega para um neomonarquismo

"Os que um dia criticam o excesso de ativismo judicial, quando a Justiça os desagrada, saúdam no dia seguinte esse mesmo ativismo, se calhar de ficarem felizes com a decisão ou mesmo a iniciativa dos tribunais".

Por Alon Feuerwerker*

Supremo Tribunal Federal STF justica - Foto: Agência Brasil

 Senado argentino recusou uma proposta de legalização do aborto que fora aprovada pela Câmara dos Deputados. É improvável que isso tenha encerrado o debate. Ele deverá prosseguir e espera-se que as diversas correntes políticas e religiosas continuem defendendo seus pontos de vista. Nada impede que o tema volte à pauta no Legislativo do país vizinho, instância onde esse tipo de discussão costuma correr.

Já aqui o debate acontece não entre deputados e senadores, mas no Supremo Tribunal Federal. As maiorias conservadoras são consistentes no Congresso e as correntes favoráveis vibram com a possibilidade de contornar essa dificuldade, apoiando a transferência da decisão para o tribunal constitucional. Pegam uma carona na onda de ativismo judicial que o país vem surfando há algum tempo.

O problema do esvaziamento da esfera política em benefício da burocrático-estatal não é só brasileiro. Nos Estados Unidos, a guerra mais cruenta entre democratas e republicanos, numa época de guerras políticas especialmente cruentas, é em torno da composição da Suprema Corte. Se a maioria será conservadora ou liberal (progressista). É uma pauta sem acordo político-parlamentar possível.

O enfraquecimento da chamada democracia é planetário, principalmente pela dificuldade de transformar maiorias sociais em eleitorais, e estas em maiorias político-governamentais. Mas aqui no Brasil a coisa já chegou a outro patamar. O Congresso já deixou de ser visto pela sociedade como o palco primeiro de negociação e solução dos dissensos políticos. E o Legislativo não resiste, vem na prática abrindo mão de seu papel, num mecanismo claro de autodefesa.

Um Congresso acossado por ameaças judiciais-policiais parece preferir a perda de poder, se isso ajudar a afrouxar a corda que enlaça seu pescoço. Some-se a isso o hábito institucionalizado de “perdi uma votação, não aceito e vou recorrer ao Supremo”. Estão criadas as condições para transformar o STF numa instituição que na prática acumula o Poder Legislativo. Com as consequências previsíveis, como, por exemplo, a divisão em bancadas.

A anomalia aqui descrita não é nova. Nem o diagnóstico. O importante é notar um detalhe: os que um dia criticam o excesso de ativismo judicial, quando a Justiça os desagrada, saúdam no dia seguinte esse mesmo ativismo, se calhar de ficarem felizes com a decisão ou mesmo a iniciativa dos tribunais. Esse parece ser o único pacto político em vigor. Estão todos de acordo em enfraquecer ainda mais a representação política eleita na urna.

A direita protesta quando o STF envereda por reescrever a Constituição no tema do aborto, mas curte quando o tribunal pratica um constitucionalismo criativo no tema dos direitos e garantias individuais. Já a esquerda exige fidelidade à letra da Carta no segundo caso, mas saúda que a Corte ensaie “atualizar” o texto no primeiro. O resultado é visível: vamos regredindo de um republicanismo meio mambembe para um neomonarquismo distribuído por onze monarcas.

A cada polêmica, as partes são chamadas a manifestar-se diante do soberano, que em seguida decidirá, não conforme o que foi escrito pelos representantes do povo, mas guiado por uma sabedoria supostamente superior, quem sabe derivada de algo similar ao direito divino dos reis de antigamente. Talvez não seja só coincidência um príncipe da família real deposta em 1889 ter sido cogitado como candidato a vice na corrida presidencial.