Unasul: Ascensão e queda da América do Sul

Ainda que o ataque à Unasul não signifique seu fim, ele não deixa de ser um indicativo de que existem motivações claramente políticas por trás da posição tomada pelos seis países que decidiram suspender sua participação no organismo.

Por Leandro Gavião*

Unasul - Divulgação

No último dia 20 de abril, Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Paraguai anunciaram a suspensão, por tempo indeterminado, de sua participação na União de Nações Sul-Americanas (Unasul).

O grupo alega que a organização não está funcionando adequadamente e que a polarização política tem atuado como impeditivo para a obtenção de uma posição consensuada sobre o nome do próximo secretário-geral do bloco. A vacância do cargo perdura desde o fim da gestão do colombiano Ernesto Samper, em 31 de dezembro de 2017.

Ainda que essa interrupção não signifique o fim imediato da Unasul, a decisão tomada pela metade mais rica dos países-membros coloca um grande obstáculo à sua sobrevivência, além de significar um retrocesso sem precedentes no projeto de construção da América do Sul como espaço privilegiado da diplomacia brasileira.

Foi fundamental no processo de ressignificação da região. Do governo de João Figueiredo em diante, todos os presidentes brasileiros encaminharam algum projeto voltado para o subcontinente. Contudo, a América do Sul stricto sensu somente figurou na retórica oficial a partir do lançamento da proposta da Área de Livre Comércio Sul-Americana (Alcsa), de Itamar Franco.

Mesmo sem lograr êxito, a Alcsa revelou uma mudança de posicionamento do governo brasileiro, que passou a visualizar na América do Sul um espaço privilegiado para a diplomacia.

Da América Latina à América do Sul

A ideia de América do Sul e a restrição geográfica do conceito de vizinhança remontam à chancelaria do Barão do Rio Branco. Contudo, sua instrumentação institucional – resultando em iniciativas concretas de cooperação e integração – precisou esperar até a década de 1990. Nesse contexto, é comum reconhecer o papel fundamental do eixo Brasília-Buenos Aires, que, ao superar antigas rivalidades, possibilitou a assinatura do Tratado de Assunção (1991), dando vida ao Mercosul.

A conjuntura interamericana também contribuiu para que a América do Sul ganhasse contornos de apelo identitário, ultrapassando a condição de mera expressão geográfica. Sua “concorrente” latino-americana, que havia ganho relevo a partir da criação da Cepal e da Alalc – em 1948 e 1960, respectivamente –, perdeu operacionalidade nos anos 1990. Primeiro, porque se reconheceu que as ousadas propostas de integração regional de coloração latino-americana não conseguiram decolar. Segundo, por causa da “deserção” do México, uma vez que o país latino-americano mais importante fora da América do Sul concluiu as negociações para ingressar no Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta).

O reconhecimento do compartilhamento de uma mesma matriz cultural-idiomática e a alteridade em relação aos Estados Unidos, que atuavam como fatores de sustentação da identidade latino-americana, perderam a relevância que tinham no passado. Buscou-se, a partir de então, priorizar projetos mais pragmáticos, que atentassem para o subcontinente sul-americano, ainda que isso significasse incluir dois países de herança não latina: a Guiana e o Suriname.

O nascimento da América do Sul

O papel do Brasil foi fundamental no processo de ressignificação da região. Do governo de João Figueiredo em diante, todos os presidentes brasileiros encaminharam algum projeto voltado para o subcontinente. Contudo, a América do Sul stricto sensu somente figurou na retórica oficial a partir do lançamento da proposta da Área de Livre Comércio Sul-Americana (Alcsa), de Itamar Franco.

Mesmo sem lograr êxito, a Alcsa revelou uma mudança de posicionamento do governo brasileiro, que passou a visualizar na América do Sul um espaço privilegiado para a diplomacia.

Os governos seguintes deram continuidade à construção política da região. A iniciativa de Fernando Henrique Cardoso de convocar a I Reunião de Presidentes da América do Sul, em 2000, simbolizou uma mudança de paradigma nas relações interamericanas. Até aquele momento, as reuniões de cúpula assumiam um perfil ora latino-americano, ora pan-americano.

Publicado após o encerramento do encontro, o Comunicado de Brasília expressou os principais temas debatidos na reunião e indicou algumas propostas para o futuro, enfatizando a importância dos direitos humanos, da democracia, da paz regional e do aprimoramento da infraestrutura regional. É importante destacar que aquele foi o primeiro documento oficial a citar a identidade supranacional sul-americana, definida como variável passível de contribuir “para o fortalecimento de outros organismos, mecanismos ou processos regionais, com abrangência geográfica mais ampla, de que fazem parte países da América do Sul”.

Paralelamente, lançou-se a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (Iirsa), de modo que as fronteiras deixassem de “constituir um elemento de isolamento e separação para tornar-se um elo para a circulação de bens e pessoas, conformando-se assim um espaço privilegiado de cooperação”.

Com alguma licença poética, pode-se afirmar que a América do Sul nasceu no ano 2000.
A consolidação do projeto sul-americano

Em 1º de janeiro de 2003, durante a sessão de posse no Congresso Nacional, Lula anunciou que a política externa de seu governo seria orientada para “a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social”. O presidente também se comprometeu a fazer “florescer uma verdadeira identidade do Mercosul e da América do Sul”.

No ano seguinte, a III Reunião de Presidentes da América do Sul resultou na Declaração de Cuzco e na fundação da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), com o objetivo de integrar o subcontinente nos âmbitos “político, social, econômico, ambiental e de infraestrutura”, tendo em vista fortalecer “a identidade própria da América do Sul”.

Em 2007, a Casa se tornou a Unasul. Em 2008, os doze chefes de Estado assinaram seu Tratado Constitutivo. Menos de quatro meses depois, a Unasul passou por seu primeiro grande teste. A Bolívia vivia uma crise separatista motivada por grupos radicais de oposição ao governo. Por meio de uma comissão ad hoc, a Unasul colaborou para isolar politicamente os manifestantes separatistas e garantir a unidade do Estado boliviano.

Em 2010, a Unasul foi igualmente importante ao buscar uma solução negociada para as tensões entre a Venezuela de Hugo Chávez e a Colômbia de Álvaro Uribe. Os dois países haviam rompido relações diplomáticas em julho, preocupando a vizinhança com a possibilidade de uma escalada das hostilidades. Após reatarem as relações, Chávez e Juan Manuel Santos – que havia tomado posse no dia 7 de agosto daquele ano– destacaram a importância da Unasul como canal privilegiado para a solução de conflitos.

Em setembro do mesmo ano, houve uma ameaça de ruptura da ordem constitucional no Equador. Policiais e militares organizaram um grande protesto contra medidas de austeridade de Rafael Correa. Pairava um clima de tensão e incerteza em várias cidades do país. O aeroporto da capital e o prédio do Congresso chegaram a ser tomados por militares, acarretando a suspensão das atividades do Legislativo. Ao discursar no principal quartel do Exército, em Quito, Correa foi insultado e atacado com bombas de gás lacrimogêneo, precisando ser hospitalizado.

Diante desse cenário preocupante, a reação da Unasul foi mais célere e dinâmica do que a de outras organizações regionais, condenando com veemência as manifestações violentas e ameaçando isolar o país em caso de golpe. Convém destacar que a posição favorável a Correa ultrapassou as preferências políticas de cada mandatário e, por sugestão do presidente conservador chileno, Sebastián Piñera, incorporou-se um Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da Unasul, de modo a desencorajar casos semelhantes de tentativa de violação da ordem democrática.

Ancorada nesse protocolo, a Unasul suspendeu o Paraguai do bloco após concluir que o processo de impeachment sofrido pelo presidente Fernando Lugo, em junho de 2012, estava permeado de irregularidades, configurando um golpe parlamentar. A decisão do julgamento já se encontrava pronta antes mesmo da apresentação da defesa, que nem sequer pôde solicitar a dilação probatória. Carecendo de concretude, as acusações de “mau desempenho” de suas funções foram de caráter preponderantemente ideológico, e não de juízo de ilicitude na conduta. O Paraguai regressou à Unasul somente um ano depois, após realizar novas eleições.

Com base nos exemplos supracitados, conclui-se que a Unasul operou como um canal de diálogo capaz de assegurar a normalidade institucional dos países-membros e solucionar controvérsias, garantindo a paz regional a despeito da contribuição ou não de terceiros países e de organizações exógenas.

Paralelamente, o bloco contribuía para desenvolver um sentimento de parceria e de destino comum entre seus membros. É particularmente interessante observar os esforços para cultivar a convergência mesmo havendo muitas discordâncias ideológicas entre os governos da região.

Nesse sentido, o empenho brasileiro foi determinante para evitar que a Unasul reproduzisse os equívocos e as limitações da Alba, cuja identidade apelava abertamente ao socialismo e ao antiamericanismo.

Em 2010, a América do Sul poderia ser dividida em três grandes famílias políticas: esquerda bolivariana (Bolívia, Equador, Paraguai e Venezuela), centro-esquerda (Argentina, Brasil e Uruguai) e direita (Chile, Colômbia e Peru). Contudo, a busca por soluções concertadas e a capacidade de diálogo eram valores que estavam acima das diferenças, possibilitando sanar problemas regionais.

O desmonte da América do Sul

É um erro muito grave associar a Unasul às esquerdas ou ao antiamericanismo. Primeiro, porque a Unasul é derivada da I Reunião de 2000, quando praticamente todos os países da região eram governados por presidentes de direita ou de centro-direita. Segundo, porque a Unasul sempre se posicionou de maneira suprapartidária, com abertura ao diálogo entre diferentes grupamentos ideológicos; além de defender de forma irrestrita o estado de direito e o pluralismo, conforme se pode verificar ao longo de seu Tratado Constitutivo e no texto do protocolo sobre o compromisso com a democracia.

A “desideologização” da política externa brasileira foi uma das bandeiras levantadas pelo PSDB na disputa presidencial de 2006. Dez anos depois, ao assumir a chancelaria no governo de Michel Temer, o tucano José Serra reproduziu o mesmo mote. Agora, sob a gestão de seu correligionário Aloysio Nunes, a Unasul se tornou a mais nova vítima da “diplomacia do G-Nada” de Temer.
Ainda que esse ataque à instituição não signifique seu fim, ele não deixa de ser um indicativo de que existem motivações claramente políticas por trás da posição tomada pelos seis países. Todos governados por coalizões de direita, diga-se de passagem.

Retoricamente, o apelo à “desideologização” sempre soa agradável. Mas, parafraseando Norberto Bobbio, pode-se dizer não há nada mais ideológico do que afirmar que existe ação política desprovida de ideologia.