Informalidade: pretexto para atacar a Previdência Social

O argumento dos neoliberais sobre o impacto da informalidade nas contas da Previdência Social é mais um aspecto do falso debate a respeito das contas públicas

Por Osvaldo Bertolino


 


No seu discurso de posse no Ministério da Fazenda, Antônio Palocci disse que o Brasil não podia mais “conviver com uma sociedade com duas classes de trabalhadores”. Por isso, segundo ele, era inadiável uma reforma que estabelecesse para os funcionários públicos regras de aposentadoria similares aos dos demais trabalhadores brasileiros. Como se observa facilmente, ele não estava preocupado com os trabalhadores. Muito menos com a clássica definição de cidadania: os direitos civis, políticos e sociais. Direitos civis são todos aqueles em que se baseiam as liberdades individuais, e cuja vigência é (ou deveria ser) assegurada por um Judiciário ágil e democrático. Direitos políticos são aqueles que conferem a cada cidadão uma parcela de influência na formação do poder político. E, finalmente, os direitos sociais: um mínimo de bem-estar econômico, seguridade social e a participação mais plena possível na herança cultural da sociedade.



 


Palocci, um sofista contumaz, estava defendendo o rebaixamento desses direitos — o que de fato acabou acontecendo. O governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) iniciou o trabalho, ao fazer alterações profundas nas aposentadorias do setor privado. Na gestão de Palocci, ele impôs essa agenda e o Congresso Nacional, com apoio do Palácio do Planalto, fez uma reforma igualmente radical para acabar com “as duas classes de trabalhadoras”. Hoje, novamente esta velha tese liberal volta à tona. A campanha diz que sem desregulamentação das relações de trabalho as empresas cada vez mais optam pela informalidade. Os trabalhadores informais muitas vezes não pagam nenhum tipo de imposto. Pior para as contas do Estado, especialmente para a Previdência Social.



 


Setor agrícola


 


 


O Brasil tem 75 milhões de trabalhadores, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desses, apenas 5 milhões são servidores públicos. Dos demais, cerca de 29 milhões já estão filiados ao INSS. Cerca de 40 milhões estão fora, em decorrência da informalidade, da ausência de registro ou do tipo de atividade econômica que praticam. O menor percentual de contribuintes está no setor agrícola (12,2%), que emprega dois em cada dez trabalhadores brasileiros. Na indústria, que responde por 14,1% das vagas, o índice de contribuintes é de 64,7%. Em compensação, as aposentadorias e pensões rurais respondem por dois terços do “déficit” — segundo o critério utilizado pelo governo. Na cidade, a relação contribuição-benefício está praticamente em 90%. No meio rural, despenca para 12%.



 


Apesar de ainda baixo, é importante lembrar que o percentual de trabalhadores que contribuem para a Previdência vem crescendo ao longo dos últimos anos. De acordo com os dados da Pnad, são três anos consecutivos de crescimento, saindo de 45% em 2002 para 47,8% no ano passado — uma elevação de 6,2%. O índice chegou a oscilar em torno de 42% no início dos anos 90. O número absoluto de contribuintes saltou de R$ 35,5 milhões em 2002 para R$ 40,8 milhões em 2005, uma alta de 15%. No mesmo período, o número de brasileiros empregados cresceu menos, 8%. Na década passada, quando a informalidade tomou conta do mercado de trabalho brasileiro, parecia que o fim do emprego formal, com carteira assinada, estava próximo. Era uma tendência da “era” FHC.


 


 


Mão-de-obra terceirizada


 


 


No entanto, nos últimos três anos contabilizados pela Pnad o emprego com carteira assinada cresceu no país — desde janeiro de 2003, foram criadas 4,6 milhões de vagas com carteira assinada. “A vantagem é que o debate sobre a informalidade difundiu entre as pessoas a importância do sistema previdenciário. As pessoas passaram a ter mais acesso às informações, mais consciência da importância de contribuir para a Previdência”, diz o secretário de Políticas de Previdência Social, Helmut Schwarzer. Segundo ele, a fiscalização sobre os sonegadores aumentou, seja pela eficiência do Estado, seja por mudanças na legislação. Schwarzer cita, por exemplo, a mudança que obrigou as empresas a recolher a contribuição previdenciária de trabalhadores terceirizados.


 


 


Antes, as empresas terceirizavam a mão-de-obra para fugir do imposto. Agora, essa vantagem acabou. “Nossas estimativas indicam que 3 milhões de pessoas foram formalizadas em virtude dessa mudança na legislação”, afirma Schwarzer. Ele ressalta que, mesmo na agricultura, onde a informalidade é muito alta, o índice de trabalhadores que contribuem para a Previdência vem crescendo. “O agronegócio injeta um fluxo de renda muito forte nas regiões rurais. Essa renda acaba ajudando na construção de uma série de atividades produtivas nessas regiões, muitas delas com empregos formalizados”, diz ele. “Esse segmento é deficitário em qualquer país, devido aos conta-própria e à agricultura familiar. Sempre haverá um forte desequilíbrio”, explica o secretário.


 


 


Baixa renda


 


 


Esses números mostram que a tese da desregulamentação das relações de trabalho não melhoram as contas da Previdência. Os neoliberais querem combater o trabalho informal acabando com direitos trabalhistas. Querem, assim como Palocci, acabar com a diferença entre “duas classes de trabalhadoras” nivelando a de cima com a de baixo. A informalidade — um eufemismo para ilegalidade — representa uma das principais barreiras a ser vencida nessa batalha. A massa de mão-de-obra rural temporária, por exemplo, é estimada em 4,2 milhões de trabalhadores — número equivalente àqueles com ocupação permanente. Mas, para isso, os trabalhadores não podem abrir mão de suas conquistas históricas. Além da formalidade, o aumento dos salários será peça chave para melhorar as contas da Previdência.


 


 


Os números da Pnad mostram que os trabalhadores de baixa renda não têm incentivos para contribuir com a Previdência — o piso previdenciário é igual a um salário mínimo. À medida que cresce a renda do trabalhador, aumenta o percentual de contribuintes em relação ao pessoal empregado. Para se ter uma idéia da disparidade, enquanto entre quem ganha até meio salário mínimo o índice de contribuintes é de apenas 2,1%, entre quem recebe acima de 20 mínimos esse percentual sobe para 87,1%. Na faixa de renda de até um salário mínimo (que engloba três em cada dez trabalhadores brasileiros), o percentual de contribuintes é de 22,6% — metade da média nacional. Esses e muitos outros absurdos podem ajudar na compreensão de uma verdade simples e cristalina: a Previdência é um mecanismo de distribuição de renda e não pode ser transformada em uma máquina que devora recursos arrecadados pelos trabalhadores para bancar privilégios do setor privado. O próximo artigo começará a abordar os fundos de pensão.