A direita sobe a aposta no Uruguai

Na semana passada, o presidente Tabaré Vasquez, do Uruguai, destituiu o comandante das forças armadas daquele país. Começa uma nova fase do jogo pesado da direita para desestabilizar o governo da Frente Ampla.
Por Hugo Cores, do La República

A destituição do General Carlos Díaz do comando do Exército do Uruguai faz parte, aparentemente, de uma sucessão de fatos mais ampla, cujo desenlace é, em grande medida, ainda indefinido. Contudo, o que já foi mostrado até agora é extremamente interessante. A democracia uruguaia enfrenta um problema com os militares, especialmente com o Exército. Reconhecer isto significa dar por perdida a tese anterior, sustentada desde várias tribunas, de que não havia qualquer dificuldade nesse setor. Esse é o primeiro fato novo que deve ser registrado.



Como todos devem lembrar, nos últimos anos não foram poucas as vozes que apresentavam um panorama diferente: tudo estava em calma e transcorria pelos caminhos normais, os problemas eram técnicos ou logísticos. Como conclusão, defendia-se a inutilidade, ou mesmo a inconveniência, de levar adiante as definições programáticas da Frente Ampla que, no que se refere ao tema militar, indicavam a necessidade de depurar as forças armadas.



A negativa dos comandos militares de avançar na busca da verdade mostra a existência no seio das forças armadas de um fator, ainda muito forte, de identificação e respaldo às ações realizadas durante a ditadura. O que levou Carlos Díaz para a rodada de reuniões ilegais com os dirigentes da oposição foi a procura de uma saída para suas dificuldades de oferecer informação sobre o segundo vôo? Tudo parece indicar que esse foi pelo menos um dos temas abordados.



O outro elemento novo e instrutivo é a resposta do pesidente da República diante das manobras de Sanguinetti. Contrariamente ao que vem sendo afirmado, a drástica decisão do presidente indicou clareza e firmeza em um setor-chave do debate democrático. Sendo esse um cargo político, diante de uma falta grave cabe apenas a destituição, especialmente quando se trata de um setor, o do comando das Forças Armadas, no qual não podem ser permitidas as imprecisões nem os excessos. Muito menos nas atuais circunstâncias, quando os militares ainda não se resignaram a aceitar que não estão habilitados institucionalmente para a ação política. E que também não podem participar de atos contra o governo, como costumava fazer o deposto comandante, marcando presença nas cerimônias rituais dos saudosos da ditadura.



Sem história
Uma das dificuldades “internas” das forças armadas é que, na sua aliança com os setores mais autoritários e conservadores do espectro político, contribuíram para uma ‘saída política’ que não exigiu deles – mas também não permitiu a eles – refletir sobre sua própria gestão. Entre 1973 e 1985 tiveram uma intervenção totalizadora e violenta sobre a política e não extraíram disso nenhum ensinamento. Não incorporaram nem um mínimo das reflexões. Ficaram expostos sem tirar nenhum proveito quanto ao conhecimento de si próprios.



Em vez de fazer intrigas com os políticos do Partido Colorado, deveriam pedir uma mão para reconstruir sua própria memória, a memória das suas atrocidades, não apenas em matéria de direitos humanos. Suas atrocidades dos tempos em que, “fazendo política” ao seu estilo, tiveram nas mãos todo o poder. Suas barbaridades com o sistema de habitação, seus crimes contra o salário, contra a saúde pública, contra a educação. Contra os Bancos Oficiais e as empresas públicas. Contra o Poder Judiciário. Sua responsabilidade no crescimento vertiginoso da dívida externa. Seus atos de corrupção, como a Operação Conserva, a compra de ativos, a represa de Palmar, entre outros.



Se tivessem exigido deles (e permitido) aprender do passado, saberiam que os militares, quando fazem política, cometem erros muito pesados. Muitas vezes irreparáveis. Por isso, após 11 anos de hegemonia militar, levaram o país à ruína. Contando com todas as ferramentas do poder nas mãos, foram despejados do governo porque a imensa maioria dos uruguaios tinha chegado à conclusão de que o despotismo militar era prejudicial para o país.



Privados da narração dos seus próprios erros, os comandos militares acabaram se acostumando a escutar somente as palavras cúmplices e aduladoras dos políticos conservadores. E tudo leva a crer que ficam descontentes quando falam com eles em outra linguagem.



Os ataques contra o governo
Nesse contexto, os ataques da direita contra o governo continuaram subindo de tom. Desde fins de setembro, quando foi dado o “NÃO” ao Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos, funciona um acordo tácito entre vários meios de comunicação e dirigentes políticos conservadores no sentido de aderir de maneira automática a qualquer ação contra o governo. Não param diante de nenhuma artimanha. E o mais suave que já foi dito é que estamos em uma ditadura. Alguns dirigentes das câmaras empresariais já demonstraram que sua aliança com os políticos conservadores continua de pé.



O tom de algumas declarações sobre a greve dos empresários de caminhões e de táxis parece mostrar a existência de outra área em que se tenta provocar uma desestabilização que pouco tem a ver com os objetivos proclamados. Uma greve geral por tempo indeterminado no transporte tem um peso político muito forte. Não é prudente deixar o governo sozinho nesse terreno. A força política precisa pedir a palavra. E precisa convocar os cidadãos a se manifestarem.



Neste quadro, os ataques contra os sindicatos também fazem parte do pacote. De modo completamente equivocado, a própria esquerda repete os chavões da necessidade do “voto secreto” nas decisões sindicais. Feliz, a direita manipula-os no ar.



Será necessário discutir tudo de novo. Trata-se de um debate interno que aparece e reaparece a cada tantos anos, mas a discussão lá embaixo, entre os trabalhadores, sempre deixa ensinamentos positivos. E, finalmente, os sindicatos classistas terminam fortalecidos, por muito que isso incomode seus detratores.



Quando a direita sobe a aposta
Finalmente, o cursinho, estilo “venezuelano”, seguido pela oposição conservadora está fadado a ter conseqüências em todo o sistema. Esta polarização política tensa, promovida pelos dirigentes políticos e corporativos da direita, com o apoio irrestrito do oligopólio dos meios de comunicação, deverá ser enfrentada pelo movimento popular.



Parece claro que ainda resta por conhecer uma parte do episódio que culminou com a destituição de Díaz. A publicação, em Búsqueda, da reunião dele com políticos conservadores faz pensar que está em curso um movimento destinado a colocar a prova o governo da Frente Ampla no terreno militar. Nesse campo, há tensões em várias áreas: as extradições para o Chile, o desacordo de alguns chefes de que seja, como corresponde, o Ministério do Interior o encarregado do controle da prisão onde serão encarcerados os militares processados e o relatório sobre o segundo vôo.



Os objetivos da Frente quanto à democratização da sociedade e do Estado estão mais vigentes do que nunca, da mesma maneira que o alerta democrático das organizações populares para defender o governo e suas decisões, tanto no repúdio ao TLC como em matéria de verdade e justiça.



As organizações sociais têm se pronunciado com clareza. Declaram-se em estado de alerta. Neste contexto, a Frente Ampla, como força política, deveria convocar a cidadania em defesa do governo e dos passos dados por ele. Como dizia o General Seregni, “para não deixar que façam trapaça com nosso destino”.