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Eleições na Itália: Centro-esquerda, esperança e conflito

"Muito próxima de uma vitória eleitoral, a coalizão anti-Berlusconi propõe um programa bem mais avançado que o de sua primeira passagem pelo governo. Mas ainda está longe de resolver tensões internas e demonstrar que

Por Andrea Colombo*
"Muito próxima de uma vitória eleitoral, a coalizão anti-Berlusconi propõe um programa bem mais avançado que o de sua primeira passagem pelo governo. Mas ainda está longe de resolver tensões internas e demonstrar que poderá liderar mudanças profundas.
O novo programa propõe política social mais avançada e corajosa. Mas a coalizão não manteve sua promessa de fazer escolhas claras, precisas e unitárias sobre todas as questões importantes No último 11 de fevereiro, data da dissolução do Parlamento e da convocação das próximas eleições legislativas italianas de 9 e 10 de abril, Romano Prodi, antigo presidente da Comissão Européia e candidato da oposição, apresentou solenemente o programa de sua coalizão de centro-esquerda, a União. O texto em questão, fruto do trabalho de doze grupos de estudo – um para cada ponto principal do programa – é volumoso: quase 300 páginas. Para os responsáveis de centro-esquerda, trata-se de apresentar as grandes linhas do futuro governo, no caso da vitória eleitoral que as pesquisas prevêem.

Antes da campanha, o comentário mais freqüentemente feito pela maioria de centro-direita, a "Casa das Liberdades", em relação à coalizão de Prodi era justamente de que esta não tinha um projeto comum consolidado. Segundo o presidente do Conselho de Ministros, Silvio Berlusconi, e seus amigos políticos, a União – coalizão que reúne onze partidos e é composta de uma ala moderada majoritária e de uma forte minoria radical – estaria muito dividida em questões fundamentais, o que dificultaria constituir uma força política com credibilidade. Seu único elemento de "liga" seria a hostilidade ao chefe do governo e ao líder de direita.

A Itália teme sobretudo a instabilidade, já que não esqueceu a crise de 1998, quando a Refundação Comunista, o mais forte partido da esquerda radical, provocou a queda do governo, a despeito de sua aliança com Prodi. A decisão de abrir a campanha eleitoral para a apresentação do programa da União tinha, portanto, o objetivo de privar Berlusconi de seu mais forte argumento de campanha.

Programa mais avançado, porém evasivo

Entretanto, este "golpe" não acertou o alvo. Certamente, convencer-se de que o programa laboriosamente arquitetado pela esquerda não dizia nada, como afirmaram vários jornalistas políticos, é uma injustiça. Este longo texto desenha, em grandes traços, uma estratégia geral muito diferente daquele que sustentou a ação do governo Berlusconi nos últimos cinco anos. O programa propõe uma política social mais avançada e mais corajosa do que as muito tímidas colocadas em prática pelos governos de centro-esquerda durante o quinquênio 1996-2001. Mas é necessário reconhecer que a coalizão não manteve sua promessa de fazer escolhas claras, precisas e unitárias sobre todas as questões importantes.

Na busca de um equilíbrio impossível entre as exigências, freqüentemente opostas, dos partidos da União, o programa recorre a fórmulas bizantinas. Assim, entre sua ala moderada, favorável à retirada das tropas italianas do Iraque após acordo com os norte-americanos e as autoridades iraquianas; e a ala radical, que demanda uma retirada imediata no caso de vitória eleitoral, a coalizão optou pela fórmula ambígua: "anúncio imediato de retirada". O mesmo procedimento foi adotado a respeito da educação. A ala da esquerda exigia a revogação da reforma berlusconiana e a ala moderada, uma "correção". O programa estipula de maneira enigmática que a coalizão, "assinalando radical descontinuidade com as orientações e escolhas da centro-direita, vai revogar as leis em vigor que são contraditórias com o (seu) programa".

Em outros campos, é ainda pior. A tentativa de propor uma lei para melhorar a situação dos casais homossexuais não casados, por exemplo, fracassou devido à oposição irredutível de Francesco Rutelli, responsável pelo segundo partido da União, a Margherita, herdeira da antiga Democracia Cristã. Rutelli defendeu arduamente todas as posições do Vaticano e também as do cardeal Camillo Ruini, presidente da Conferência Episcopal Italiana. Conclusão: nada foi decidido, as discussões serão retomadas após as eleições.

Ainda mais incômoda é a questão do trem de alta velocidade (TAV) planejado para o Valle di Susa. Toda população local se posicionou contra o TAV, com o apoio dos partidos radicais da União, enquanto as agremiações moderadas se declaravam favoráveis. Na esperança vã de esconder esta desavença, o programa da União não faz menção ao problema. Este "esquecimento" não escapou ao Il Sole/24 Ore, jornal próximo à Confederação Geral da Indústria Italiana (Confindustria), que rapidamente o denunciou. Desejoso de tranqüilizar os industriais, Prodi evocou um "engano" e garantiu que o TAV será construído. Alguns minutos depois, foi desmentido pelos três responsáveis da ala radical: Fausto Bertinotti, secretário da Refundação Comunista, Alfonso Pecoraro, secretário dos Verdes, e Oliviero Diliberto, secretário do Partido dos Comunistas da Itália (PCDI). O incidente forneceu à direita um excelente argumento de propaganda: ele seria a prova das divergências persistentes dentro da União.

Ineficaz contra-ofensiva de Berlusconi

Às divergências da centro-esquerda e à inabilidade com a qual esta tentou fazer oposição se somou uma ofensiva midiática de Berlusconi sem precedentes. Nas semanas que precederam o início da campanha, o presidente do Conselho literalmente invadiu a televisão e o rádio, freqüentemente passando, no mesmo dia, de um canal a outro. Com uma eficácia notável: a partida que há apenas três meses parecia ganha pela União novamente se abria em fevereiro, mês em que começa, oficialmente, a campanha eleitoral, no início de fevereiro. A centro-esquerda tinha vantagem, mas a atual maioria havia reconquistado pontos e se encontrava em melhor posição. As pesquisas, no meio de março, voltavam a ser mais favoráveis à oposição.

A incapacidade da União de superar suas divisões e a esclarecer as ambigüidades que resultaram delas são, em parte, naturais e inevitáveis. A coalizão reúne onze partidos, dos quais provavelmente apenas três – os Democratas de Esquerda (DS), a Margherita e a Refundação Comunista – conseguirão ultrapassar o limite mínimo de votos exigidos e chegar ao Parlamento. Mas as forças minoritárias têm uma identidade forte e detêm posições locais sólidas. A aliança que dirigida por Prodi vai herdar desde a antiga direita democrata-cristã, hoje a União dos Democratas pela Europa (Udeur), de Clemente Mastella, até formações de extrema esquerda, como a Refundação. Além disso, apresenta em sua lista independentes ligados ao movimento altermundialista.

Todas estas formações têm, obviamente, um denominador comum: a vontade de derrotar Berlusconi, que manipula a situação política a serviço de suas próprias empresas e não hesita em fazer votar leis para, junto com seus colaboradores, derrotar, a justiça (1). Mas a plataforma comum da União vai além: por heterogêneo que pareça, o centro-esquerda é verdadeiramente unido na oposição à política de direita desde 2001. Em compensação, diverge sobre diversas questões da ordem do dia.

Em teoria, a hegemonia da ala esquerda deveria ser evidente. O principal partido da coalizão são os Democratas de Esquerda, herdeiros diretos do antigo Partido Comunista Italiano (PCI), que foi durante quarenta anos o mais poderoso do ocidente. Porém, mais de quinze anos depois do abandono de toda referência ao comunismo, a principal formação da esquerda italiana não cessou de se deslocar para o centro, rivalizando com os outros para conquistar o eleitorado moderado. Entretanto, bolsões mais radicais sobrevivem no interior do antigo PCI. Esta ambigüidade estrutural alimenta evidentemente uma confusão geral.

Uma lei eleitoral contra a centro-esquerda

Para compreender os obstáculos com os quais se depara a centro-esquerda, é necessário ainda evocar uma outra razão: a nova lei eleitoral que a maioria parlamentar de direita impôs no último minuto. Esta legislação busca combinar duas opções absolutamente opostas: de um lado, o retorno quase integral ao sistema proporcional (em substituição ao voto distrital); de outro, a manutenção da bipolaridade, que força os partidos a formar a coalizão. Na eleição para a Câmara dos Deputados, as formações que concorrerem sozinhas terão que obter no mínimo 4% dos votos para chegar ao Parlamento. Às que se participarem de coalizão que apresente candidato a primeiro-ministro e programa comum, bastarão 2% dos votos. A coalizão que chegar ao topo obterá um "prêmio pela maioria" – isto é, terá automaticamente 53% das cadeiras do parlamento.

Os analistas que previam tensões em caso de vitória da centro-esquerda têm razão. Mas a ameaça à estabilidade da aliança vem mais dos centristas (Margherita e Udeur) que dos comunistas da Refundação Este sistema parece concebido para fazer explodir os conflitos latentes no seio da União: o retorno à proporcionalidade impulsiona as agremiações de identidade clara a exacerbar os aspectos mais conflituosos, a fim garantir para si visibilidade e futuro político. Paralelamente, a necessidade de formar coalizões força a construir alianças vastas demais, cujos componentes estão condenados a se opor para não desaparecer.

A reforma eleitoral representa, portanto, uma armadilha que a esquerda enxergou mas não soube evitar. Uma outra questão embaraça a União: o processo confuso de unificação de dois dos principais partidos da coalizão, o DS e a Margherita. Prodi empurrou ambos nesta direção. Candidato de toda a coalizão, o antigo presidente da Comissão Européia não tem nenhum partido para apoiá-lo nos momentos difíceis. E sua experiência passada fez com que medisse os limites da situação. Ele pagou um preço alto em 1998, quando, após uma brusca crise de sua maioria, Massimo D'Alema, secretário do DS na época, tomou seu lugar na presidência do Conselho. A unificação do DS e da Margherita é a premonição contra uma aventura do mesmo tipo.

As pressões de Prodi obrigaram o DS, e sobretudo a Margherita (bastante morna no início), a avançar na direção de uma lista comum para a eleição da Câmara dos Deputados. Todavia, os dois partidos se apresentaram divididos no pleito do Senado. Um passo para frente e dois para trás… Longe de se reduzir, a competição entre os dois partidos, cresceu com o desafio de disputar a liderança de um eventual partido único. Além disso, Rutelli, o responsável pela Margherita, não esconde sua ambição de seduzir os eleitores de centro-esquerda desapontados, a fim de recuperar um dia, não muito distante, o eleitorado da Forza Italia, partido de Berlusconi.

Os muitos analistas que previam fortes tensões políticas em caso de vitória da centro-esquerda, certamente têm razão. Mas a ameaça sobre a estabilidade da nova aliança vem mais dos centristas da Marguerite e do Udeur que dos comunistas de Refundação. Porque Bertinotti tem forte tendência de lealdade em relação a Prodi. Há dois anos, a cada risco de embate ele deu provas de uma grande flexibilidade – ao ponto de excluir de suas listas um candidato trotskista, cujas declarações tinham sido julgadas "incompatíveis" com as posições da aliança.

A Refundação Comunista sabe muito bem que não pode reeditar o golpe de 1998 – quando, ao sair da coalizão, provocou a demissão de Prodi – sob pena de ser lançada ao ostracismo e condenada à se tornar um gueto, isto é, desaparecer. Depois de uma eventual vitória, ele se firmará, sem dúvida, como o partido mais fiel à aliança. Não é o caso dos centristas: Rutelli aposta na explosão da centro-direita e no desaparecimento da Forza Italia, herdeira de uma boa parte dos votos da antiga Democracia Cristã. O partido-empresa de Berlusconi, estima ele, não sobreviveria a uma saída da cena política de seu fundador e líder. Para atrair votos, a Margherita poderia denunciar a aliança com a ala radical da União e buscar um acordo com o segmento mais católico da Casa das Liberdades, a União do Centro (UDC), dirigida por Pierferdinando Casini, hoje presidente da Câmara dos Deputados.

Por outro lado, é impossível imaginar agora as conseqüências de uma improvável derrota da centro-esquerda. Apenas uma certeza: ela seria muito mais dolorosa que em 2001. Naquela época, a Refundação Comunista não fazia parte da aliança, e perder as eleições era o resultado mais provável. Desta vez, ao contrário, a União reúne todos os partidos que se opõem a Berlusconi. Na disputa pelo Parlamento e governo, espera, portanto, confirmar seu sucesso no pleito europeu de 2004 e nas eleições regionais de 2005. A esquerda teria as piores dificuldades a se refazer de tamanha decepção e sofreria um trauma profundo".

(Trad.: Sílvia Pedrosa)

* Jornalista do diário Il Manifesto, em Roma

1 – Ler "Um 'golpe de Estado' na mídia?", Le Monde Diplomatique Brasil, fevereiro de 2004.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil (www.diplo.com.br)