Evo Morales: ''O capitalismo só prejudicou a América Latina''

O presidente da Bolívia, Evo Morales, de 46 anos, falou em entrevista à revista alemã Der Spiegel sobre os planos de reformas para seu país, o socialismo na América Latina, sua relação com Chávez e Fidel e as relações freqüentemente tensas dos progressist


Der Spiegel – Senhor presidente, por que uma parte tão grande da América Latina está se movendo para a esquerda?



Evo Morales – A injustiça, a desigualdade e a pobreza das massas nos obrigam a procurar melhores condições de vida. A população de maioria indígena da Bolívia sempre foi excluída, politicamente oprimida e culturalmente alienada. Nossa riqueza nacional, nossas matérias-primas, foi saqueada. Os índios já foram tratados como animais aqui. Nos anos 30 e 40 eles eram borrifados com DDT para matar os piolhos de sua pele e de seu cabelo sempre que vinham à cidade. Minha mãe nem podia pôr os pés na capital de sua região natal, Oruro. Hoje estamos no governo e no Parlamento. Para mim, ser esquerdista significa combater a injustiça e a desigualdade, mas queremos principalmente viver bem.



DS – O senhor convocou uma assembléia constituinte para estabelecer uma nova República boliviana. Como deverá ser a nova Bolívia?



Morales – Não queremos oprimir nem excluir ninguém. A nova República deve se basear na diversidade, no respeito e nos direitos iguais para todos.Há muito a fazer. A mortalidade infantil é assustadoramente alta. Eu tive seis irmãos e quatro deles morreram. No campo, a metade das crianças morre antes de chegar ao primeiro ano.



DS – O seu partido MAS, socialista, não tem a maioria de dois terços necessária para emendar a Constituição. O senhor pretende negociar com outras facções políticas?



Morales – Estamos sempre abertos à conversação. O diálogo é a base da cultura indígena, e não queremos fazer inimigos. Adversários políticos e ideológicos, talvez, mas não inimigos.



DS – Por que o senhor suspendeu temporariamente a nacionalização dos recursos naturais, um dos projetos mais importantes do seu governo? A Bolívia não tem know-how para extrair suas matérias-primas?



Morales – Continuamos negociando com as companhias envolvidas. A atual falta de investimentos não tem nada a ver com a nacionalização. É culpa do governo de direita do [ex-presidente] Tuto Quiroga, que parou todo o investimento na produção de gás natural em 2001 porque, como ele afirmou, não havia mercado interno para o gás natural na Bolívia.



Pretendemos começar a prospectar de novo. Assinamos um acordo de fornecimento de gás natural com a Argentina e também estamos cooperando com a Venezuela. Assinamos um contrato para trabalhar uma mina de ferro com uma companhia indiana. Ela criará sete mil empregos diretos e dez mil indiretos. Negociamos preços e condições muito melhores do que nossos antecessores.



DS – Mas existem grandes problemas com o Brasil. A Bolívia está pedindo um preço mais alto pelo fornecimento de gás natural. Isso não prejudica sua relação com o presidente [brasileiro] Luiz Inácio Lula da Silva?



Morales – Lula está demonstrando sua solidariedade. Ele se comporta como um irmão mais velho. Mas estamos tendo problemas com a Petrobras, a companhia energética brasileira. As negociações estão muito difíceis, mas estamos otimistas.



DS – A Petrobras ameaçou cancelar todos os seus investimentos na Bolívia.



Morales – Isso não vem do governo brasileiro, mas de alguns executivos da Petrobras. Eles colocam essas ameaças na imprensa para nos pressionar. O Brasil é uma grande potência, mas tem de nos tratar com respeito. O companheiro Lula me disse que haverá um novo acordo e que ele quer importar mais gás.



DS – A Bolívia não vende gás natural para o Chile porque os chilenos tiraram o acesso da Bolívia ao mar em uma guerra há mais de 120 anos. Hoje uma socialista está no poder no Chile. O senhor vai lhes fornecer gás agora?



Morales – Nós queremos superar nossos problemas históricos com o Chile. O mar nos dividiu e o mar deve nos reunir. O Chile concordou pela primeira vez em falar sobre o acesso da Bolívia ao mar. É um enorme passo adiante. A presidente chilena veio à minha posse e eu participei da posse da [presidente do Chile] Michelle Bachelet em Santiago. Nós nos complementamos.



O Chile precisa de nossos recursos naturais e nós precisamos do acesso ao mar. Nessas circunstâncias, deve ser possível encontrar uma solução no interesse dos dois países.



DS – Que influência o presidente Hugo Chávez da Venezuela teve na nacionalização dos recursos naturais da Bolívia?



Morales – Absolutamente nenhuma. Nem Cuba nem a Venezuela se envolveram. Eu mesmo administrei a nacionalização. Somente sete dos meus mais próximos associados sabiam do decreto e da data. Embora eu tenha me encontrado com Chávez e [o presidente cubano] Fidel Castro em Cuba alguns dias antes do anúncio, não falamos sobre a nacionalização. Eu já havia assinado o decreto antes de partir para Cuba, e o vice-presidente o entregou ao gabinete.



Quando Fidel me perguntou em Cuba até onde o projeto havia avançado, eu lhe disse que pretendíamos anunciar a nacionalização nos próximos dias, mas não lhe dei uma data. Fidel me aconselhou a esperar até a convenção constituinte. Chávez não sabia de nada.



DS – Chávez quer instalar na Venezuela um socialismo para o século 21. Seu assessor ideológico, Heinz Dieterich, um alemão, esteve recentemente na Bolívia. O senhor pretende introduzir o socialismo na Bolívia?



Morales – Se socialismo significa uma vida melhor, com igualdade e justiça, e que não teremos problemas sociais e econômicos, então é bem-vindo.



DS – O senhor admira Fidel Castro como o ''avô de todos os revolucionários latino-americanos''. O que aprendeu com ele?



Morales – Solidariedade, principalmente. Fidel nos ajuda muito. Ele doou sete clínicas de olhos e 20 hospitais básicos. Os médicos cubanos já realizaram 30 mil operações de catarata gratuitas em bolivianos. Cinco mil bolivianos de origem pobre estão estudando medicina em Cuba sem custos.



DS – Mas os médicos bolivianos protestam contra a presença cubana. Dizem que ela os priva de seu ganha-pão.



Morales – O Estado boliviano não paga aos médicos cubanos, por isso eles não estão tirando nada dos bolivianos.



DS – O senhor sabe como Castro está passando?



Morales – Sim, falei com ele ao telefone hoje. Está se sentindo melhor nos últimos dois dias. Ele me disse que estará suficientemente bem para participar da cúpula dos países não-alinhados em Havana em setembro.



DS – E ele vai discursar?



Morales – Certamente. É uma oportunidade que não perderá.



DS – Os americanos estão preocupados que Chávez esteja ganhando influência demais. O senhor não está se tornando dependente da Venezuela?



Morales – O que me une a Chávez é o conceito de integração da América do Sul. É o velho sonho de uma grande pátria, um sonho que já existia antes da conquista espanhola, e Simon Bolívar lutou por ele mais tarde. Queremos uma América do Sul no molde da União Européia, com uma moeda como o euro, que valha mais que o dólar. O petróleo de Chávez não é importante para a Bolívia. Nós só recebemos diesel em condições favoráveis. Mas não somos dependentes da Venezuela. Nós nos complementamos. A Venezuela compartilha sua riqueza com outros países, mas isso não nos torna subordinados.



DS – A esquerda latino-americana está se fraturando em uma corrente social-democrata moderada, liderada por Lula e Bachelet, e um movimento populista radical representado por Castro, Chávez e o senhor. Chávez não está dividindo o continente?



Morales – Existem social-democratas e outros que estão caminhando mais na direção da igualdade, quer os chamem de socialistas ou comunistas. Mas pelo menos a América Latina não tem mais presidentes racistas ou fascistas como no passado. O capitalismo só prejudicou a América Latina.



DS – O senhor é o primeiro presidente indígena na história boliviana. Que papel a cultura indígena terá em seu governo?



Morales – Devemos combinar nossas consciências sociais com a competência profissional. Em meu governo, intelectuais da classe alta podem ser ministros ou embaixadores, assim como membros de grupos étnicos indígenas.



DS – O senhor acredita que os povos indígenas desenvolveram um modelo social melhor que as democracias brancas ocidentais?



Morales – Antigamente não havia propriedade privada. Tudo era propriedade comum. Na comunidade indígena onde nasci, tudo pertencia à comunidade. Esse modo de vida é mais eqüitativo. Nós indígenas somos a reserva moral da América Latina. Agimos segundo uma lei universal que consiste em três princípios básicos: não roubar, não mentir e não ser indolente. Essa trilogia também servirá de base para a nossa nova Constituição.



DS – É verdade que todos os funcionários do governo terão de aprender as línguas indígenas quíchua, aimara e guarani no futuro?



Morales – Os servidores públicos nas cidades precisam aprender a língua de sua região. Se já falamos espanhol na Bolívia, também devemos ser fluentes em nossas próprias línguas.



DS – Os brancos estão tratando melhor os indígenas, agora que o senhor está no poder?



Morales – Melhorou muito. A classe média, os intelectuais e os profissionais liberais hoje se orgulham de suas raízes indígenas. Infelizmente, alguns grupos oligárquicos continuam nos tratando como inferiores.



DS – Alguns críticos afirmam que agora os índios na Bolívia são racistas em relação aos brancos.



Morales – Isso faz parte de uma guerra suja que a mídia de massa está travando contra nós. Empresários ricos e racistas possuem a maior parte da mídia.



DS – A Igreja Católica o acusou de querer reformar a educação religiosa. Não haverá liberdade de religião na Bolívia?



Morales – Eu sou católico. A liberdade religiosa não está em questão. Mas sou contra um monopólio no que se refere à fé.



DS – Alguns grandes proprietários de terras ameaçaram uma resistência violenta à planejada reforma agrária. Que terras o senhor pretende desapropriar?



Morales – Vamos desapropriar grandes extensões de terra que não estão sendo cultivadas. Mas queremos uma reforma agrária democrática e pacífica. A reforma de 1952 levou à criação de muitas parcelas pequenas e improdutivas no planalto andino.



DS – A Bolívia está dividida em províncias ricas no leste e pobres no planalto. Hoje existe um forte movimento de autonomia no leste. O país corre o risco de se dividir?



Morales – Isso é o que querem alguns pequenos grupos fascistas e oligárquicos. Mas eles perderam a votação sobre a assembléia constituinte.



DS – A Bolívia é um importante produtor de narcóticos. Seus antecessores mandaram destruir as plantações ilegais de coca. O senhor pretende fazer o mesmo?



Morales – Do nosso ponto de vista, a coca não deveria ser destruída nem completamente legalizada. As plantações deveriam ser controladas pelo Estado e pelos sindicatos de agricultores. Nós lançamos uma campanha internacional para legalizar as folhas de coca, e queremos que a ONU retire a coca de sua lista de substâncias tóxicas. Cientistas provaram há muito tempo que as folhas de coca não são tóxicas. Nós decidimos uma redução voluntária na área que está sendo plantada.



DS – Mas os EUA afirmam que a maior parte das colheitas de coca acaba no tráfico de cocaína.



Morales – Os americanos dizem todo tipo de coisa. Eles nos acusam de não cumprir as condições de sua ajuda ao desenvolvimento. Os governos pró-capitalistas que me antecederam apoiaram o massacre dos plantadores de coca. Mais de 800 camponeses morreram na guerra contra as drogas. Os EUA estão usando sua guerra às drogas como desculpa para expandir seu controle na América Latina.



DS – A agência antidrogas americana, DEA, tem agentes estacionados na Bolívia que assessoram os militares e a polícia em seus esforços para combater o tráfico de drogas. O senhor vai mandá-lo de volta para casa?



Morales – Eles continuam lá, mas não estão mais de uniforme e armados, como antes.



DS – Como está sua relação com os EUA? Pretende viajar a Washington?



Morales – Um encontro com [o presidente americano] George W. Bush não está planejado. Eu pretendo viajar a Nova York para visitar a Assembléia Geral da ONU. Quando eu ainda era membro do Parlamento, os americanos não me deixaram entrar no país. Mas chefes de Estado não precisam de visto para viajar para a ONU em Nova York.



DS – O senhor quebrou o nariz quando jogava futebol algumas semanas atrás. Está jogando menos agora?



Morales – Meu nariz ainda está torto? Praticar esporte sempre foi meu maior prazer. Eu não fumo, raramente bebo álcool e raramente danço, apesar de já ter tocado trompete. Os esportes me ajudaram a chegar ao palácio presidencial. Meu primeiro cargo no sindicato foi o de secretário esportivo. Eu dirigi um time de futebol no interior quando tinha 13 anos.



DS – Por que o senhor não usa gravata?



Morales – Nunca usei gravata voluntariamente, embora tenha sido forçado a usar uma para fotos quando era jovem e para eventos oficiais na escola. Eu costumava embrulhar minha gravata em um jornal e sempre que o professor verificava eu a colocava rapidamente. Não estou habituado a isso. A maioria dos bolivianos não usa gravata.