Robert Fisk: As muitas mortes de Beirute

No ano de 551, a magnífica e rica cidade de Berytus — sede da frota imperial romana do Mediterrâneo Oriental — foi atingida por um violento terremoto. Logo em seguida, o mar recuou quilômetros e os sobreviventes do abalo — ancestrais dos libaneses de h

Algumas cidades parecem eternamente condenadas. Quando os Cruzados chegaram a Beirute a caminho de Jerusalém, no século 11, massacraram cada homem, mulher e criança da cidade. Na Primeira Guerra Mundial, a Beirute otomana sofreu uma fome terrível. O Exército turco havia confiscado todos os cereais e as potências aliadas haviam bloqueado a costa. Ainda guardo alguns cartões-postais antigos que comprei por aqui, a 30 anos, de crianças magérrimas, nuas, abando­nadas num orfanato. Uma americana que morava em Beirute em 1916 descreveu como “passou por mulheres e crianças deitadas ao lado da estrada, de olhos fechados em rostos pálidos, cadavéricos. Era comum ver pessoas vasculhando os montes de lixo atrás de cascas de laranja, ossos e outras sobras, e comendo-os avidamente quando encontravam. Por toda parte viam-se mulheres buscan­do sementes comestíveis no capim à beira das estradas…” Como isso acontece com Beirute?


 


Durante 30 anos observei este lugar morrer e depois se elevar do túmulo e depois morrer de novo, seus prédios de apartamentos tão perfurados de balas que pareciam renda irlandesa, seus habitantes matando-se uns aos outros.


 


Morei aqui durante 15 anos da guerra civil que custou 150 mil vidas. Testemunhei duas invasões israelenses e anos de bombardeios deste país, ofensivas que mataram mais de 20 mil habitantes. Eu os vi sem braços, sem pernas, sem cabeças, esfaqueados e esmagados atrás das paredes das casas. Contudo eles formam um povo fino, educado, moral, cuja generosidade espanta todo estrangeiro, cuja gentileza envergonha qualquer ocidental e cujo sofrimento nós quase sempre ignoramos. Eles se parecem conosco, os habitantes de Beirute. Têm a pele clara e falam perfeitamente o inglês e o francês. Viajam pelo mundo. Suas mulheres são adoráveis e sua comida, rara. Mas, por que falar disso hoje quando os israelenses — em um de seus ataques mais cruéis a esta cidade e ao seu entorno — arrancam os moradores de Beirute de suas casas, destroçam as pontes da cidade, deixam a população sem comida, sem água, sem eletricidade? Dizemos que os libaneses começaram esta última guerra e daí comparamos suas estarrecedoras mortes as mortes em Israel, como se fossem números iguais. E o que é mais terrível: deixamos os libaneses abandonados ao seu próprio destino, como um povo enfermo, e dedicamos nosso precioso tempo a retirar os estrangeiros de lá, enquanto balbuciamos alguma coisa sobre a resposta “desproporcional” de Israel à captura de seus soldados pelo Hezbolá.


 


Caminhei recentemente pelo centro deserto de Beirute e aquilo me lembrou, mais do que nunca, um cenário de filme, um lugar de sonhos, belo demais para durar, uma fênix nascida das cinzas da guerra civil cuja plumagem era tão vivamente colorida que cegou seu próprio povo. Essa parte da cidade — já como uma Dresden de ruínas — foi reconstruída por Rafiq Hariri, o primeiro-ministro assassinado a pouca distância dali, em 14 de fevereiro do ano passado. Os destroços daquele atentado, um pavoroso precursor da presente guerra, continuam ao pé do Mediterrâneo, esperando pelo último investigador da ONU a procurar pistas do assassinato — um investigador que há muito trocou esta cidade sitiada pela segurança de Chipre.


 


Às portas de um vazio Restaurant Étoile — os melhores escargots e capuccinos de Beirute, onde Hariri jantou certa vez com Jacques Chirac — sentei na calçada para observar a guarda parlamentar patrulhando a fachada do empório de construção francesa que abriga o que sobrou da democracia libanesa. Tantas dessas ruas foram construídas por parisienses durante o mandato francês e elas têm sido curiosamente restauradas, seus portais de estilo arábico ornados por colunas de mármore romanas escavadas da antiga Via Máxima a alguns metros de distância.


 


Hariri amava este lugar e, levando Chirac para uma cerveja, certo dia ele me avistou sentado numa mesa. “Ah, Robert, venha cá”, trovejou, virando-se em seguida para Chirac como um gato prestes a comer um canário: “Quero apresentá-lo, Jacques, ao jornalista que disse que eu não conseguiria reconstruir Beirute!”


 


E agora ela está sendo desconstruída. O Aeroporto Internacional Mártir Rafiq Hariri foi atacado três vezes pelos israelenses, seus saguões e shopping centers cintilantes trepidando sob os mísseis que estrondeiam nas pistas e depósitos de combustíveis. A maravilhosa “via rápida elevada”de Hariri, uma via transnacional, foi arrebentada por bombardeiros israelenses. A maioria de suas pontes rodoviárias foi destruída. O farol em estilo romano foi destroçado pelo míssil disparado de um helicóptero Apache. As favelas de Haret Hreik, Ghobeiri e Shiyah foram arrasadas e transformadas em pó. Deixam 250 mil muçulmanos xiitas ao relento, desesperados por arrumar abrigo em escolas e parques abandonados pela cidade.


 


Ali era, de fato, a base do Hezbolá, mais um daqueles “centros mundiais de terrorismo” que o Ocidente vive descobrindo em terras muçulmanas. Era o “hábitat” de Saied Hassan Nasralá, o líder do Partido de Deus, um homem calculista, cáustico, implacável. Como também de Saiad Mohamed Fadlalá, entre os mais sábios e eloqüentes clérigos. E também lá haviam muitos dos principais estrategistas militares do Hezbolá- incluindo os homens que planejaram durante meses a captura dos dois soldados israelenses na quarta-feira retrasada.


 


Mas será que as dezenas de milhares de pobres que vivem ali mereciam esse ato de punição em massa? Para um país que se jacta de sua pontaria milimétrica – uma proeza dúbia, de todo modo, mas não é esta a questão — o que esse ato de destruição nos diz sobre Israel? Ou de nós mesmos?


 


Num edifício moderno de uma parte não danificada de Beirute, eu cruzo, por puro acaso, com uma figura bem conhecida e proeminente do Hezbolá, camisa branca aberta no pescoço, terno escuro, sapatos limpos. “Se precisar, continuaremos por dias, ou semanas, ou meses, ou…” E ele enumera essas horríveis estatísticas nos dedos da mão esquerda. “Acredite-me, temos surpresas maiores ainda por vir para os israelenses – muito maiores – você verá. Então receberemos nossos prisioneiros e só aceitaremos pequenas concessões.” Saí dali sentindo-me como se tivesse levado uma pancada na cabeça.


 


Na parede oposta há buganvílias púrpuras e jasmins brancos, e um arbusto de gardênias. Os libaneses adoram flores, suas cores, seus aromas. Beirute está coberta de árvores e arbustos que recendem como o paraíso. Quanto às massas de moradores fugitivos da poeira das favelas bombardeadas de Haret Hreik, no sul de Beirute, encontrei centenas deles recentemente, sentados embaixo de árvores e deitados na grama ressecada ao lado de uma antiga fonte doada à cidade pelo sultão otomano Abdul-Hamid. Os impérios caem. Ao longe, sobre o Mediterrâneo, dois helicópteros do porta-aviões USS Iwo Jima podiam ser vistos, avançando através da névoa e da fumaça para o complexo fortificado da embaixada estadunidense em Awkar. Manobras para retirar mais cidadãos do Império Americano.


 


Não houve uma única palavra desse mesmo império para ajudar as pessoas largadas no parque, oferecer-lhes comida ou assistência médica. Uma fumaça cinzenta cobre a cidade toda, os incêndios de terminais de petróleo e os edifícios em chamas criam um coquetel de ar sulfuroso que entra por baixo das portas e pelas janelas. Sinto seu cheiro quando acordo de manhã. Metade da população de Beirute está tossin­do com toda essa sujeira. Respiram sua própria destruição enquanto contemplam a morte. O ódio que qualquer alma humana sentiria com tamanho sofrimento e perda foi expresso muito bem pelo maior poeta libanês, o místico Khalil Gibran, quando escreveu sobre o meio milhão de libaneses que morreram na fome de 1916, a maioria moradores de Beirute.


 




Meu povo morreu de fome, e aquele que
Não pereceu de inanição foi
Massacrado pela espada;
Eles pereceram de fome.
Numa terra rica em leite e mel.
Eles morreram porque as víboras e
Filhos de víboras cuspiram seu veneno
No espaço onde os Cedros Sagrados e
As rosas e o jasmim exalam Sua fragrância.


 


A espada continua abrindo caminho em Beirute. Quando parte de um avião — talvez a ponta da asa de um F-16 atingido por um míssil, embora os israelenses neguem isso — despencou do céu sobre os subúrbios orientais, no fim de semana passado, corri até o local para encontrar um motorista parcialmente decapitado em seu carro e três soldados libaneses da unidade de logística do Exército. Esses eram os duros, bravos soldados de apoio de Kfar Chim, que têm consertado linhas de eletricidade e de abastecimento de água nos últimos dez dias para manter Beirute viva.


 


Conhecia um deles. “Oi, Robert, seja rápido porque acho que os israelenses vão bombardear de novo, mas nós lhe mostraremos tudo que pudermos”. Eles me levaram através dos incêndios para me mostrar o que podiam dos destroços, ficando ao meu redor para me proteger. Algumas horas mais tarde, os israelenses voltaram de fato, quando os homens da pequena unidade de logística estavam indo para a cama. Os israelenses bombardearam as barracas e mataram 10 soldados, incluindo aqueles três homens gentis que cuidaram de mim em meio às chamas de Kfar Chim.


 


Esquecemos as matanças antigas, como os massacres de Sabra e Chatila


 


E por quê? Estejam certos os israelenses sabem o que estão atingindo. É por isso que eles mataram nove soldados perto de Trípoli quando bombardearam as antenas de rádio militares. Mas destruir uma unidade de logística? Homens cuja única tarefa era consertar linhas de eletricidade? Então me dou conta. Beirute deve morrer. Deve ficar sem eletricidade agora que a usina elétrica de Jiyeh está em chamas. Ninguém deve manter Beirute viva. Aqueles pobres homens tinham de ser exterminados.


 


Os habitantes de Beirute são duros, não se comovem facilmente. Mas ao término do fim de semana passado, muitos ficaram arrasados com a foto publicada pelos jornais de uma garotinha largada como uma flor partida num campo perto de Ter Harfa, os pés recolhidos, a mão pousada sobre o pijama azul rasgado, os olhos fechados, afastados da câmera. Ela havia sido outro alvo “terrorista” de Israel e muitas pessoas, como eu, viram uma assustadora semelhança entre essa imagem e a de uma menina polonesa morta num campo, ao lado de sua irmã, em 1939. Volto para casa e vasculho meus arquivos, imagens da invasão israelense de 1982. Há mais fotos de crianças mortas, de pontes destroçadas. “Israelenses Ameaçam Atacar Beirute”, diz uma manchete. “Israelenses Retaliam.” “Líbano em Guerra.” “Beirute Sitiada.” “Massacre em Sabra e Chatila.” Sim, esquecemos facilmente as matanças mais antigas.


 


Até 1.700 palestinos foram massacrados em Sabra e Chatila por milícias cristãs aliadas de Israel, em setembro de 1982, enquanto soldados israelenses — como eles próprios testemunharam mais tarde no tribunal de inquérito instalado em seu próprio país – assistiam à matança. Eu estava lá. Parei de contar os cadáveres quando cheguei a 100. Muitas mulheres tinham sido estupradas antes de ser esfaqueadas ou baleadas. No entanto, quando estava fugindo do bombardeio de Ghobeiri com meu motorista Abed na semana retrasada, passamos pela entrada do campo, o lugar exato onde vi os primeiros palestinos assassinados. E não pensamos neles. Não nos lembramos deles. Eles foram mortos em Beirute, e eu estava ten­tando permanecer vivo em Beirute, como venho tentando permanecer vivo aqui por 30 anos.


 


Estava de volta à costa quando meu celular tocou. E uma mulher israelense ligando para mim dos Estados Unidos, a autora de um excelente romance sobre os palestinos. “Robert, tenha cuidado, por favor”, diz ela. “Estou tão, tão triste com o que está sendo feito no Líbano. É imperdoável. Rezo pelo povo libanês, pelos palestinos, pelos israelenses. Agradeço a preocupação e a maneira generosa com que ela estava condenando o massacre.”


Na parede da minha sala de visitas, lembro-me bem, havia uma litografia pintada à mão de soldados franceses chegando em Beirute em 1842, para proteger os cristãos maronitas dos Drusos. Eles estavam acampados no Jardin des Pins, que mais tarde se tornou o local da embaixada francesa onde, há algumas horas apenas, vi homens e mulheres franceses se registrando para serem retirados do país. Do lado de fora da janela, ouço de novo o assobio de jatos israelenses, escondidos atrás da fumaça que agora esvoaça até quase 40 quilômetros mar adentro. Fairouz, a cantora mais popular do Líbano, ia se apresentar este ano no festival de Baalbek, cancelado agora como todos os festivais de música, dança, teatro e pintura no país. Uma de suas canções mais conhecidas fala da cidade natal:


 




A Beirute – paz ao Líbano com todo meu coração
E beijos – ao mar e às nuvens.
À rocha de uma cidade que parece a face de um velho marinheiro.
Da alma de seu povo ela faz vinho,
De seu suor, faz pão e jasmim.
Como é que ela pôde conhecer a fumaça e o fogo?