Gabriel García Marquez: ''O Fidel que eu conheço''

O diário cubano Granma e outros veículos de comunicação da América Latina reproduziram nesta semana um artigo do escritor Gabriel García Marquez, no qual ele descreve sua admiração por Fidel Castro e conta um pouco da relação de ambos. Confira abaixo a ín

O Fidel que eu conheço



Sua devoção pela palavra. Seu poder de sedução. Vai buscar os problemas onde estejam. Os ímpetos da inspiração são próprios de seu estilo. Os livros refletem muito bem a amplitude de seus gostos. Deixou de fumar para ter a autoridade moral de combater o tabaquismo. Gosta de preparar as receitas de cozinha com uma espécie de fervor científico. Mantém-se em excelentes condições físicas com várias horas de ginástica diária e de natação freqüente. Paciência invencível. Disciplina férrea. A força da imaginação o arrasta aos imprevistos. Tão importante como aprender a trabalhar é aprender a descansar.



Fatigado de conversar, descansa conversando. Escreve bem e gosta de fazê-lo. O maior estímulo de sua vida é a emoção do risco. A tribuna de improvisador parece ser seu habitat perfeito. Começa sempre com voz quase inaudível, com um rumo incerto, mas aproveita qualquer resplendor para ir ganhando terreno, palmo a palmo, até que dá uma espécie de grande bote e se apodera da audiência. É a inspiração: o estado de graça irresistível e deslumbrante, que só negam aqueles que não tiveram a glória de vivê-lo. É o anti-dogmático por excelência.



José Martí é seu autor de cabeceira e teve o talento de incorporar seu ideário à corrente sangüínea de uma revolução marxista. A essência de seu próprio pensamento poderia estar na certeza de que fazer trabalho de massas é fundamentalmente ocupar-se dos indivíduos.



Isso poderia explicar sua confiança absoluta no contato direto. Tem um idioma para cada ocasião e um modo distinto de persuasão de acordo com os deferentes interlocutores. Sabe se situar no nível de cada um e dispõe de uma informação vasta e variada que lhe permite se mover com facilidade em qualquer meio. Uma coisa se sabe com segurança: esteja onde estiver, como estiver e com quem estiver, Fidel Castro está ali para ganhar. Sua atitude diante da derrota, inclusive nos atos mínimos da vida cotidiana, parece obedecer a uma lógica privada: nem sequer a admite, e não tem um minuto de sossego enquanto não consegue inverter o final e convertê-lo em vitória. Ninguém pode ser mais obsessivo que ele quando se propõe a chegar ao fundo de qualquer coisa. Não há um projeto colossal o milimétrico no qual não se empenhe com uma paixão enfurecida. E em especial se tem que enfrentar a adversidade. Nunca como então parece de melhor fisionomia, de melhor humor. Alguém que crê conhecê-lo bem lhe disse: as coisas devem andar muito mal, pois você está vistoso.



As reiterações são um de seus modos de trabalhar. Exemplo: o tema da dívida externa havia aparecido pela primeira vez em suas conversas há cerca de dois anos, e foi evoluindo, se ramificando, se aprofundando. O primeiro que disse, como uma simples conclusão aritmética, era que a dívida era impagável. Depois apareceram os descobrimentos escalonados: as repercusões da dívida na economia dos países, seu impacto político e social, sua influência decisiva nas relações internacionais, sua importância providencial para uma política unitária da América Latina… até conseguir uma visão totalizadora, exposta em uma reunião internacional convocado em seguida e que o tempo se encarregou de demonstrar.


Sua mais importante virtude política é essa capacidade de vislumbrar a evolução de um feito até suas conseqüências remotas… mas essa capacidade não é exercida por iluminação, mas sim como resultado de um raciocínio árduo e tenaz. Seu auxiliar supremo é a memória e ele a usa exageradamente para sustentar discursos ou conversas privadas com raciocínios angustiantes e operações aritméticas de uma rapidez incrível.


Requer o auxílio de uma informação incessante, bem mastigada e digerida. Sua tarefa de acumulação informativa começa desde que se levanta. Toma café-da-manhã com não menos do que 200 páginas de notícias de todo o mundo. Durante o dia lhe fazem chegar informações urgentes onde esteja, calcula que cada dia tem que ler cerca de 50 documentos e a isso é necessário somar os informes dos serviços oficiais e de seus visitantes e tudo o que possa interessar sua curiosidade infinita.




As respostas têm que ser exatas, pois é capaz de descobrir a mínima contradição de uma frase casual. Outra fonte de vital informação são seus livros. É um leitor voraz. Ninguém explica como consegue tempo e nem qual método ele usa para ler tanto e com tanta rapidez, ainda que ele insista em dizer que não tem nenhum método em especial. Lê o idioma inglês, mas o fala. Prefere ler em espanhol e a qualquer hora está disposto a ler um papel com letra que lhe caia em mãos. É leitor habitual de temas econômicos e históricos. É um bom leitor de literatura e a segue com atenção.


 


Tem o costume dos interrogatórios rápidos. Perguntas sucessivas que ele faz em rajadas instantâneas até descobrir o por que do por que do por que final. Quando um visitante da América Latina lhe deu um dado apressado sobre o consumo de arroz de seus compatriotas, ele fez seus cálculos mentais e disse: ''Que incrível que cada um come quatro libras de arroz por dia''. Sua tática mestra é perguntar sobre coisas que sabe, para confirmar seus dados. E em alguns casos para medir o calibre de seu interlocutor, e tratá-lo em conseqüência.


 


Não perde ocasião de se informar. Durante a Guerra de Angola descreveu uma batalha com tal minúcia em uma recepção oficial, que deu trabalho convencer a um diplomata europeu de que Fidel Castro não havia participado dela. O relato que fez da captura e assassinato de Che, assim como o do assalta de Moneda e da morte de Salvaddor Allende eram grandes reportagens faladas.


 


Sua visão da América Latina no porvir é a mesma de Bolívia e Martí, uma comunidade integrada e autônoma, capaz de mover o destino do mundo. O país do qual mais sabe, depois de Cuba, são os Estados Unidos. Conhece a fundo a índole de sua gente, suas estruturas de poder, as segundas intenções de seus governos, e isso lhe ajudou a evitar a tormenta incessante do bloqueio.


 


Em uma entrevista de várias horas, se detém em cada tema, se aventura por seus rumos menos pensados sem se descuidar jamais da precisão, consciente de que uma só palavra mal usada pode causar estragos irreparáveis. Jamais recusou contestar nenhuma pergunta, por mais provocadora que seja, nem perdeu nunca a paciência. Sobre os que lhe escondem a verdade para não lhe causar mais preocupações: ele sabe. A um funcionário que fez isso, ele disse: ''Me ocultam verdades para não me inquietar, mas quando por fim as descobrir me matarei pela impressão de me enfrentar diante de tantas verdades que deixaram de me dizer''. As mais graves, no entanto, são as verdades que se ocultam para cobrir deficiências, pois ao lado das enormes conquistas que sustentam a Revolução – conquistas políticas, científicas, desportivas, culturais – há uma incompetência burocrática colossal que afeta a quase todos, e em especial a vida doméstica.


 


Quando fala com gente da rua, a conversa recobra a expressividade e a franqueza crua dos afetos reais. Chamam-lhe: ''Fidel!'' Rodeiam-no sem riscos, o protegem, discutem, apontam contradições, fazem reclamações, com um canal de transmissão imediata, por onde circula a verdade a borbotões. É então que se descobre ao ser humano insólito, que o resplendor de sua própria imagem não deixa ver. Esse é o Fidel Castro que creio conhecer: um homem de costumes austeros e ilusões insaciáveis, com uma educação formal à antiga, de palavras cautelosas e modos tênues, incapaz de conceber nenhuma idéia que não seja descomunal.


 


Sonha com que seus cientistas encontrem a medicina final contra o câncer e criou uma política exterior de potência mundial, em uma ilha 84 vezes menos que seu inimigo principal. Tem a convicção de que a maior conquista do ser humano é a boa formação de sua consciência e que os estímulos morais, mais que os materiais, são capazes de mudar o mundo e empurrar a história.


 


Ouvi-o em suas escassas horas de nostalgia evocar as coisas que poderia ter feito de outras forma para ganhar mais tempo para a vida. Ao vê-lo muito aflito pelo peso de tantos destinos alheios, lhe perguntei o que mais queria fazer neste mundo, e ele me respondeu de imediato: parar em uma esquina.