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2º Semcine: debates começam em Salvador

Por Eduardo Carvalho

As duas primeiras mesas do 2º Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual apresentaram alguma surpresas sobre as relações de Roberto Rossellini, precursor do Neo-realismo italiano com a cultura brasileira. Também discutiu-se

O primeiro dia de debates no 2º Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, que acontece em Salvador até o próximo domingo, trouxe um interessante diálogo entre a imagem que nós brasileiros, por meio de nossa própria produção audiovisual, criamos de nosso país e a imagem do Brasil retratada por cineastas estrangeiros. A outra mesa debateu a contribuição do Neo-realismo italiano para a gênese do Cinema Novo, com especial enfoque nos laços entre a obra completa de Roberto Rossellini e uma especial interface da cultura brasileira: o pensamento atormentador do recifense Josué de Castro, o geopolítico que traçou um mapa sem linhas para delinear o desenho da fome e da pobreza no mundo.

 

O painel sobre o Neo-realismo italiano e o cinema brasileiro abriria os debates no embalo da festa da noite anterior, que marcou a abertura do Semcine e a outorga do título de Doutor Honoris Causa para Nelson Pereira dos Santos, destaque muito aguardado neste primeiro debate. A homenagem continuaria ininterrupta não fosse uma necessária inversão de mesas. Assim, abriram-se as discussões sob o tema Cinema e Multiculturalismo.

 

 

Você já Foi à Bahia? – O dia começou com Edyala Yglesias, mediadora do primeiro debate, evocando Darcy Ribeiro para lembrar “que o povo brasileiro busca uma identidade que não é branca, não é negra, não é índia, não é pura, é mestiça! Isso singulariza o brasileiro. Isso resgata sua força”. Anunciou que se lançariam ali algumas luzes sobre o entendimento dos processos que geraram as imagens estereotipadas dos brasileiros pelo mundo. Processos causados pelo contágio universal do enfoque dado pelo cinema mundial sobre nossa cultura e sociedade e pelo que as nossas próprias produções audiovisuais exibem.

 

O mais inusitado na arquitetura do debate foi a escolha dos participantes. Tínhamos, de um lado, um estrangeiro, Robert Stan, brasilianista e professor da New York University, apresentando a visão da produção nacional sobre o Brasil. De outro lado, um brasileiro, Tunico Amâncio, professor da Universidade Federal Fluminense, expondo o olhar de estrangeiros que filmaram o Brasil, com especial ênfase no resgate da obra de Marcel Camus, o autor conhecido por ter realizado a primeira versão de “Orfeu do Carnaval”, Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1959.

 

Tunico Amâncio fundamenta sua pesquisa em obras de ficção que disseminam em escala mais massiva os estereótipos. Os documentários tendem a ser mais factíveis. Os estereótipos estão mais evidenciados naqueles trabalhos em que a imaginação, ou a falta dela, atua mais fortemente. “Nossa imagem entre o exótico e o erótico é alimentada por nós mesmos. E não só no audiovisual: basta ir a uma feira de turismo e observar os estandes”, declarou de início. Depois, fez um apanhado bem humorado da cronologia da imagem do Brasil no cinema mundial: a projeção utópica européia sobre o Novo Mundo, o Eldorado, já desde a tradição dos cronistas dos descobrimentos, as histórias de degredados, a projeção utópica dos dias atuais e a constante presença de personagens exóticos e eróticos. Elencou ainda motivos sempre presentes: o café, os eternos futebol e carnaval, a musicalidade do povo, mais recentemente a capoeira, e o papagaio, o Zé Carioca que Disney nos legou como um logotipo que já tivemos um ignorante orgulho de aceitar, como símbolo de nosso ingresso no elenco de um “Wonderful World”.

 

Tunico Amâncio seguiu trilhando a cronologia de produções com locações tupiniquins: dos intercâmbios das décadas de 30 a 50, como Carmem Miranda, Orson Wells filmando no Brasil, aos eventos do pós-guerra como a erótica Bardot mergulhando na exótica Búzios, o que desaguaria em um James Bond no Rio e em Foz de Iguaçu. Emanuelle esteve no Rio, “Orquídea Selvagem” foi feito Rio… Nos 90, o Rio passa a ser demonizado e a Amazônia ascende nos devaneios de Hollywood com doutores na selva e outras muitas produções locadas na “rain florest”. Ao menos, resta o consolo de que, ao longo desta linha de tempo, o brasileiro arrumou emprego nos filmes e perdeu aquela caracterização de simpática vagabundagem que o acompanhava. Tornamo-nos, enfim, também nas telas mundiais, o exército de reserva terceiro-mundista prontamente adestráveis para ocupar as linhas de trabalhos nas multinacionais patrocinadas pelo milagre brasileiro.

 

O simpático professor Tunico Amâncio reservou grande parte de sua fala para resgatar a obra de Marcel Camus que ficou conhecido como cineasta de um só filme, sua versão do mito de Orfeu, gravado no Rio, no final dos 50. Mas Camus produziu 9 filmes ao todo, dentre os quais, destacam-se mais dois títulos feitos no Brasil. O cineasta francês, na opinião de Tunico Amâncio, “aprofundou sua visão e aproximou-se mais do imaginário brasileiro, pois sobre ele incidia um efeito afetivo com o Brasil, era casado com uma brasileira e adorava nosso país”.

 

“Camus narra e recria histórias brasileiras. Apega-se a Vinícius e Jorge Amado para avalizar sua visão em “Orfeu do Carnaval”. Depois realiza um périplo nacional, vindo do norte para o sul em “Os Bandeirantes”, que guarda imagens documentais da construção de Brasília, seguido por “Otália da Bahia”. As explanações precisas de Amâncio são acompanhadas por projeções de trechos destas três obras que mostram na tela um universo de imagens que, ao mesmo tempo que esteoretipadas e esteriotipantes, são um pouco mais representativas de nossa complexa identidade, pois que feitas sob o tal efeito afetivo com o Brasil.

 

Fechando a primeira mesa, Robert Stan, que é autor de “Multiculturalismo Tropical”, a ser lançado em 2006 pela Edusp, elegeu a figura do índio e traçou um longo itinerário de filmes que os retratam no Brasil. Exibiu filmes sobre o descobrimento das Américas com os Colombos hollywoodianos, mostrou o descobrimento do Brasil em mais de uma versão, incluindo a de “Terra em Transe”, exibiu o índio carnavalesco e o índio afrancesado do iluminismo, o índio romântico do cinema mudo, os mitos fundadores, antes e depois do contato em “Iracema”e “O Guarani”, o índio modernista de “Macunaima” Sempre projetando trechos de todos filmes rapidamente analisados, Stan mostrou ainda o índio degradado em “Iracema, uma transa amazônica”’, deteve-se em “Como era gostoso o meu francês”do homenageado Nelson Pereira dos Santos e no recente “Caramuru, a invenção do Brasil”, num menu de mais de 20 tópicos exibidos e comentados.

 

Neo-realismo Italiano e Cinema Novo – A mesa da tarde, mediada por Mauro Porru, começou com o professor da Universidade de Roma Tre, Roberto Aprà, que, após um atraso gigantesco causado pela companhia aérea, acabava de chegar a Salvador, para apresentar uma provocação inquietante. Para chegar a ela, narrou detalhadamente a ligação entre Roberto Rossellini e o brasileiro Josué de Castro. Tal contato detonou um processo criativo para um projeto, em si um novo gênero cinematográfico, que, ao cabo, não foi realizado e permanece como um provocativo convite aberto às futuras gerações de cineastas e profissionais de audiovisual com preocupações sociais.

 

Presidente da fundação Roberto Rossellini, Aprà é profundo conhecedor de sua obra e vida e, mais, da conexão entre ambas. Resumiu a trajetória do cineasta italiano, para transcender a aguardada relação que estabeleceria entre o Neo-realismo, do qual Rossellini é precursor e o Cinema Novo, do qual também é precursor Nelson Pereira dos Santos, sentado na outra extremidade da mesa. Mal deteve-se nisso. Contou, no entanto, ameaçando um anticlímax, que Rossellini sentia uma mágoa por ter ficado com a pecha de cineasta do Neo-realismo, principalmente quando assumiu uma nova fase de filmes espiritualísticos e a crítica, exceto a francesa, reprovou-o. Embora acolhido na França e influenciador da Nouvelle Vague, esta fase foi também transplantada quando Rosselini, em 57, dedicou-se à direção de um extenso e complexo documentário com forte comprometimento social, rodado na Índia, que se constituiu, na opinião de Aprà, no primeiro ensaio cinematográfico da História. Um ensaio no sentido literário que este termo carrega. Um ensaio geopolítico, totalmente fundado no interesse pela obra e no posterior contato com o intelectual brasileiro Josué de Castro, autor de “A Geografia da Fome”, livro que marcara demais Rossellini e rendera a Josué um convite para vê-lo transposto ao cinema pelas mãos do italiano. O professor Aprà lia trechos de correspondências entre os dois para ilustrar a narrativa.

 

Depois deste projeto, Rossellini desiludiu-se com o cinema e apostou que a televisão seria o veículo revolucionário através do qual conseguiria dar continuidade ao que esboçara na Índia. “Era um projeto utópico, muito adiantado para seu tempo e para os interesses que nele vigiam. Não havia produtores dispostos a bancá-lo. Foi algo que não foi feito e que fica como um convite ao futuro”, encerrou Aprà.

 

A segunda a falar foi Mariarosario Fabris, professora do Departamento de Letras Modernas da USP e autora do livro “Nelson Pereira dos Santos, um olhar Neo-realista?”. Sua fala foi uma extensa, detalhada, minuciosa e exaustiva relação de interfaces existentes e não mencionadas pela crítica, ou inexistentes e mencionadas pela crítica, ou ainda existentes e mencionadas pela crítica… uma extensa relação de citações, inspirações, plágios, e sabe-se lá o que mais entre obras que compreendem o período abarcado pelo Neo-realismo e o Cinema Novo. Uma peça científica de inestimável valor para referência e consulta, mas que se esqueceu de ser palatável a uma platéia sedenta sim de relações, porém incapaz de, daquela forma expostas, assimilá-las. Constituirá, sem dúvida, um dos documentos mais consistentes da transcrição que a competente organização do Semcine com certeza produzirá, como já fez de maneira completa e elegante com a primeira edição de 2005.

 

Nelson Pereira dos Santos com a palavra e o auditório encheu-se de um riso aliviado quando ele iniciou sua fala declarando: “Bem, posso ir. Estou saindo muito bem informado sobre minha própria história”. Como genial contador de histórias, Nelson falou da sua própria com a simplicidade que sempre acompanha sua forma humilde e tranqüila de contar as coisas.

 

Contou que na juventude assistia aos filmes de guerra, aos westerns, aos filmes noir, aos melodramas mexicanos e argentinos. “Naquele tempo eu era só paulistano, neto de italiano, morador de São Paulo, muito próximo do universo italiano. Um dia vou ao cinema e vejo uma sociedade muito abatida retratada no filme. Uma sociedade abatida pela guerra e pela desesperança. Via que aqui não precisávamos de guerra para também estarmos assim. Isso mexeu muito comigo”, conta emocionado Nelson.
“Vínhamos do fim da ditadura Vargas, éramos cineclubistas, mas enfrentávamos a censura. Quando acabou a Guerra a censura nos cineclubes diminuiu muito e pudemos, enfim, assistir aos filmes que só estudávamos pelos livros. O Neo-realismo mostrou que era possível fazer cinema no Brasil e ajudou a demolir o mito de que a língua portuguesa e a pobreza não eram cinematográficas. As condições já existiam, o Neo-realismo veio mostrar como fazer cinema naquela realidade. Era, até então, inimaginável pensar em fazer filmes com o equipamento que se arrumasse, fosse qual fosse, com atores que houvesse, com os recursos que existissem”, contou Nelson.

 

Já na sessão de perguntas da platéia, Nelson Pereira dos Santos ainda respondeu o que o levou a fazer cinema: “Foi um juramento. Estava no último ano de Direito na São Francisco. Precisava de nota em um exame oral para me formar. O professor quis ajudar e me mandou escolher o ponto. Eu disse que tanto fazia. Ele me perguntou o que eu pretendia fazer. Respondi que fazia cinema. Ele me deu a nota de que precisava e me fez jurar que nunca exerceria o Direito. Cumpro esta promessa”. Ainda bem.