Robert Fisk: A batalha pelo sul do Líbano

Por Robert Fisk, para o jornal britânico The Independent


Qlaya, Sul do Líbano, 25 de Julho. A batalha pelo sul do Líbano tem dimensões épicas, mas das alturas de Khiam os israelenses parecem estar em sérios problemas. Ninguém acreditav

Seus aviões F16 aparecem no céu, resplandecentes ao sol — pequenos peixes prateados cujos zumbidos tornam-se mais fortes à medida que descem —, suas bombas explodem sobre a velha prisão tomada pelo Hezbolá. Mas mais além da fronteira posso ver fogos raivosos que ardem ao longo das colinas e nuvens de fumo que se elevam sobre assentamento judeu de Metullah.


 


Ninguém acreditava que assim fosse, após 13 dias de assalto israelense contra o Líbano. Os katiuchas ainda saem aos pares de Khiam, deixando rastros brancos no céu e impactando contra as colinas e cidades fronteiriças israelenses. Será a frustração ou a vingança que faz com que Israel continue a lançar bombas sobre inocentes? Nas primeiras horas de terça-feira uma tremenda explosão acordou-me, sacudiu as janelas e fez estremecer as árvores, e um enorme raio levantou-se no céu a oeste de Nabatea. Assim, as vidas de uma família de sete pessoas ficaram extintas.


 


E como foi — isto é algo que obceca organizações humanitárias que trabalham no Líbano — que os israelenses bombardearam duas ambulâncias em Qana, matando dois dos feridos que transportavam e ferindo um terceiro civil pela segunda vez no mesmo dia? Todo o pessoal ficou ferido; um trabalhador tem um pedaço de metralha cravado no pescoço, mas o que preocupou a Cruz Vermelha Libanesa foi que os mísseis israelenses atravessaram o próprio centro da cruz vermelha pintada sobre cada veículo. Os pilotos utilizaram a cruz como alvo de tiro?


 


O bombardeio de Khiam provocou seus próprios incêndios nas colinas ao sul de Qlaya, onde os habitantes cristãos maronitas vêem tudo de um caminho no alto da zona montanhosa, como espectadores de uma batalha do século 19.


 


Khiam é — ou era — uma bonita aldeia de casas com entradas de pedra e janelas com ferragens decorativas, mas o objetivo de Israel é a famosa prisão que aí se encontra. Antes da retirada israelense do Líbano em 2000, o Exército do Sul do Líbano (ESL, aliado de Israel) utilizou o estabelecimento penal para deter e torturar com electricidade centenas de membros do Hezbolá e seus familiares.


 


Foi este mesmo complexo carcerário, agora convertido pelo Hezbolá em Museu da Tortura, que o finado Edward Said visitou pouco antes de morrer. Muitos membros do Hezbolá foram encerrados aqui em celas subterrâneas construídas sob o forte pelo antigo mandato francês. Estes mesmos homens combatem agora os israelenses e quase certamente refugiam-se dos seus embates nas mesmas celas nas quais outrora padeceram, e pode ser que até armazenem aí os seus mísseis.


 


Em Marjayoun, vizinha de Qlaya, onde chegaram a alojar-se os quartéis do ESL, as tropas libanesas tentam desesperadamente defender-se, como se fossem guerrilheiros do Hezbolá, utilizando as ruas deste povoado católico grego para disparar mísseis contra Israel. Patrulhas formadas por sete militares movem-se à noite pelos becos de ambas as aldeias, para o caso de o Hezbolá ter a idéia de dar mais motivo a Israel para lançar mais bombas sobre as nossas cabeças.


 


Na guerra, aguçam-se todos os sentidos. Ao amanhecer, os pássaros, a música, as flores, tudo adquire um novo significado. Uma família ainda habita a pequena casa frente à minha e vi uma mulher, ao entardecer, a recolher legumes da sua horta para a ceia, e a ignorar os urros do avião israelense que sulcava o céu e as sinistras mudanças na pressão do ar provocadas pelas bombas.


 


Em Beirute, uma pessoa observa a estupidez das nações ocidentais entre divertido e horrorizado, mas estar sentado aqui nestes povoados das colinas e escutar que a secretária de Estado estadunidense, Condoleezza Rice, planeia redesenhar o Líbano é claramente uma lição sobre a capacidade humana de auto-engano.


 


Segundo os correspondentes estadunidenses que acompanham Condoleezza na sua visita ao Médio Oriente, ela propõe a intervenção de uma força encabeçada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ao longo da fronteira libanesa-israelense que dure 60 a 90 dias, para garantir um cessar fogo. Depois disto espalhará por todo o Líbano uma força encabeçada pela aliança atlântica, de maior tamanho, que se encarregará de desarmar o Hezbolá e de treinar o exército libanês antes de este ser também colocado na fronteira.


 


Este plano, que tal como todas as propostas estadunidenses é exatamente o mesmo que Israel exige, contem a mesma qualidade de arrogância mentirosa das palavras que pronunciou na semana passada o cônsul geral israelense em Nova York ao afirmar que ''a maioria dos libaneses aprecia o que estamos a fazer''.


 


Acredita Condoleezza que o Hezbolá quer ser desarmado, ainda que seja nos termos da resolução 1559 do Conselho de Segurança? Não houve já uma força da ONU em Beirute que fugiu do Líbano depois de um grupo próximo ao Hezbolá atentar contra uma base de marines dos Estados Unidos no aeroporto de Beirute, em 1983, matando 241 soldados estadunidenses e dezenas de soldados franceses segundo mais tarde? Alguém acredita que as forças xiitas muçulmanas não farão o mesmo com qualquer força de ''intervenção'' da Otan?


 


O Hezbolá tem estado à espera, treinando e sonhando com esta guerra durante anos, por mais inescrupulosas que julguemos suas ações. Não vão entregar um território que libertaram do exército israelense através de uma guerra de guerrilhas de 18 anos, muito menos vão entregá-la a uma Otan que atua a pedido de Israel.


 


O problema está, com toda certeza, em que os Estados Unidos vêem este banho de sangue como uma ''oportunidade'' e não como uma tragédia; como ocasião para humilhar os simpatizantes do Hezbolá em Teerã e ajudar a desenhar um ''novo Médio Oriente'' sobre o qual Condoleezza falou de maneira tão enfadonha. De fato, é mais provável que isto seja usado pela Síria para humilhar Israel e os Estados Unidos no Líbano.


 


Naturalmente, o Hezbolá trouxe a catástrofe aos seus correligionários. Por todo o vale de Bekaa, os longos e perigosos caminhos cheios de crateras pelos quais tive de viajar para chegar a Qlaya estavam desertos, exceto por alguns homens conduzidos por homens em pânico cujas famílias estavam atulhadas nos veículos e que estendiam lençóis brancos pelas janelas na esperança que inspira dó — depois de todos os bombardeios israelenses contra civis — de que isso poderia protegê-los de alguma forma.


 


O único civil que vi a caminhar por estes caminhos aterradores foi um pastor de cabras que conduzia seus animais em torno das enormes crateras. Ao falar com ele descobri que está quase totalmente surdo e não ouve as bombas. Nisto, ao que parece, tem muito em comum com a secretária de Estado Condoleezza Rice.


 


O original encontra-se em The Independent, a versão em castelhano em
http://www.jornada.unam.mx/2006/07/26/048n1mun.php


 


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/.