Robert Fisk: Diário de uma semana na vida e morte de Beirute

Por Robert Fisk*



Israel faz um favor ao Líbano ao atacar o Hezbolá, diz um diplomata de Tel Aviv. Agora entendo. Os libaneses devem dar graças aos israelenses por destruir suas vidas e sua infra-estrutura. Devem agradecer todos os ataques a

Beirute. É a primeira vez que, na verdade, vejo um míssil nesta guerra. Voam demasiado rápido ou a pessoa está muito ocupada em correr para deter-se a olhá-los. Mas esta manhã Abed e eu vimos realmente um que atravessava o céu acima de nós. “Habibi (meu amigo)”, grita. E eu respondo: “Dê a volta, dê a volta!”, e nos afastamos dos subúrbios do sul, por nossa vida. Ao dar a volta na esquina há uma explosão e uma montanha de fumaça cinza surge da rua que acabamos de deixar. O que aconteceu aos homens e mulheres que vimos correr por sua vida do foguete israelense? Não sabemos. Nos ataques aéreos, tudo o que se vê são os poucos metros quadrados ao seu redor. Você sai, sobrevive e é tudo.



Chego a meu apartamento, em Corniche, e vejo que não há luz. Pronto, sem dúvida, cortaram a água. Mas sento-me na sacada e penso que não estou atirado em um sujo hotel de Kandahar ou Basra, mas sim em minha própria casa. Os cortes de energia, o medo e a falta de gasolina agora que Israel bombardeia postos de serviço, significam que desapareceram as filas de veículos que rugem e disparam buzinas perto de minha casa até às duas horas da manhã. Quando desperto na noite, escuto as aves e as ondas do Mar Mediterrâneo, e o suave movimento das folhas das palmeiras.



Esta tarde fui comprar mantimentos. Já não há leite, mas há água, pão, queijo e pescado em abundância. Quando Abed estaciona para que eu desça, o motorista da camionete 4 por 4 que está atrás gruda a mão na buzina e, quando saio do automóvel, me lança as palavras “Kess uchtak” (um xingamento a minha irmã). É a primeira vez que me xingam nesta guerra. Habitualmente, os libaneses não insultam aos estrangeiros; são pessoas corteses. Estendo a mão com a palma para baixo e a volto para cima na forma que os libaneses usam para perguntar: “qual é o problema?”, mas o outro se afasta. Seja como for, não tenho irmãs.



Segunda-feira, 17 de julho.


O telefone ainda funciona e meu celular começa a cantar como um passarinho. Muitas chamadas são de amigos que querem saber se devem fugir de Beirute ou do Líbano, ou de libaneses que estão fora do Líbano e querem saber se devem regressar. Escuto rugir as bombas na zona do Hezbolá, nos subúrbios do sul, mas não posso responder a essas perguntas. Se aconselho meus amigos a ficarem, e eles são mortos, serei responsável. Se disser a eles que partam e eles forem mortos em seus automóveis, serei responsável também. Assim, comento o quão perigoso o Líbano se tornou e lhes digo que a decisão é toda deles. Mas sinto muita pena por eles. Muitos já foram refugiados quatro vezes em 24 anos. Hoje, me chamou uma mulher libanesa que também tem a cidadania iraniana. Um de seus filhos tem passaporte norte-americano e outro somente passaporte libanês. Sua situação é de desespero. Sugiro que parta para as montanhas cristãs dos arredores de Faraya e trate de encontrar uma cabana. Ali estará segura. Assim espero.



Regresso de Kfar Chim, onde o pedaço de um míssil israelense ou da asa de um avião acaba de arrancar parte da cabeça de um motorista em seu carro. Seu aspecto é trágico: a cabeça lançada adiante no assento, como se olhasse todo o sangue que escorre de seu corpo no piso. Abed fica nervoso porque passou demasiado tempo no lugar: os israelenses sempre retornam. “Habibi, demorou demais. Nunca mais fique tanto tempo!” Ele tem razão. Os israelenses retornam e bombardeiam o exército libanês.



Agora, quem está mortificada é Fidele, minha empregada. Ela acha muito perigoso ir do distrito cristão de Beirute até minha casa porque os israelenses voaram perto do farol local, a 400 metros de minha porta. Fidele vem do Togo e prepara umas pizzas deliciosas (recomendo a qualquer um sua pizza togolesa). Peço a Abed que vá pegá-la e a traga para casa. Ela põe na máquina de lavar minha roupa suja e, cinco minutos depois, a luz se vai e temos que tirá-la toda para voltar a tentar amanhã.



Terça-feira, 18 de julho.


Às 3:45 da madrugada, desperto ao ouvir o barulho das esteiras de um tanque e do motor de um veículo militar que avança na escuridão. Desço para descobrir que o exército libanês postou um veículo de transporte de pessoal de fabricação norte-americana no estacionamento em frente. Colocaram-no estrategicamente sob umas palmeiras, como se, com isso, não pudesse ser visto pelos aviões israelenses. A idéia não me agrada, nem a meu caseiro, Mustafá, que vive no andar abaixo. O exército libanês é agora um alvo ocasional dos israelenses e esse pequeno monstro tem todo o aspecto de uma palmeira disfarçada de tanque.


 


Pela manhã, telefono a um general que é meu amigo e o setor de operações do exército me devolve a chamada para verificar a localização. Passa uma hora antes que encontrem o estacionamento em seus mapas. Logo recebo outra chamada para dizer-me que a unidade está em frente da minha casa para evitar que o Hezbolá use o estacionamento para lançar um outro míssil contra um barco israelense. Um pouco mais além, ainda na minha rua, está a Escola da Comunidade dos EUA. O exército libanês nos protege.



Chega o primeiro barco de guerra francês para recolher cidadãos de seu país que fogem do Líbano. Passa com orgulho em frente à minha sacada. Muitos navios franceses levam o nome de grandes chefes militares, e esta fragata anti-submarino, em particular, chama-se Jean-de-Vienne. Consulto minha pequena biblioteca sobre a história da França e descubro que Jean-de-Vienne era um almirante do século 14 que invadiu a povoação de Rye, em Sussex, e a ilha de Wight, e que morreu – oh, céus – combatendo os turcos muçulmanos nas cruzadas. Um barco apropriado para começar a evacuação francesa do antigo porto cruzado de Beirute.



Quarta-feira, 19 de julho.


Agora que os israelenses estão destruindo edifícios inteiros de apartamentos nos subúrbios xiitas do sul – existe uma permanente nuvem de fumaça sobre a costa, adentrando o Mediterrâneo -, dezenas de milhares de muçulmanos xiitas buscam refúgio na parte ilesa de Beirute, nos parques e escolas e ao lado do mar. Caminham em frente a minha casa de um lado para outro; as mulheres levam o chador e seus maridos e irmãos barbudos olham o mar em silêncio, enquanto as crianças jogam felizes ao redor das palmeiras. Falam com raiva de Israel, mas optam por não comentar o profundo cinismo do Hezbolá xiita, que provocou a brutalidade israelense ao capturar dois soldados. Além do Hezbolá, os israelenses dirigem agora seus ataques a fábricas de alimentos, caminhões e ônibus – sem mencionar 46 pontes – e os caminhões que recolhem o lixo não conseguem recolher os sacos de lixo e detritos que se acumulam pelas noites, por medo de serem confundidos com um lançador de mísseis. Assim, nesta manhã, ninguém recolhe o lixo.



Os jornais locais estão cheios de fotografias que jamais serão vistas nas páginas de um diário britânico: bebês decapitados e mulheres sem pernas ou braços, ou anciãos despedaçados. As incursões aéreas israelenses são promíscuas – quando se enxergam os resultados como temos visto com nossos próprios olhos – e obscenas. Sem dúvida, as vítimas igualmente inocentes do Hezbolá em Israel têm o mesmo aspecto, mas a matança no Líbano é de uma magnitude muito mais terrível. Os libaneses contemplam essas imagens e as vêem na televisão – como o resto do mundo árabe – e me pergunto quantos são induzidos a pensar em outro 11 de setembro ou qualquer que seja a próxima data.



O que a guerra faz a esta gente? Mais tarde encontro uma jornalista austríaca e lhe pergunto distraidamente a que se dedica seu pai. “A beber”, diz. Por quê? “Porque mataram seu pai em Stalingrado”.



Cruzo a rua para levar chá aos soldados que estão no estacionamento. Todos são muçulmanos xiitas de Baalbek. Jamais abrirão fogo contra um veículo com mísseis do Hezbolá. Logo volto para casa de outra visita aos subúrbios do sul e descubro que eles foram embora junto com seu monstro. A primeira boa notícia do dia.
O ministro de Finanças realiza hoje uma coletiva de imprensa para falar dos bilhões de dólares de danos causados ao Líbano pelos ataques israelenses. “Recebemos promessas de ajuda da Arábia Saudita, Kuwait e Qatar”, anuncia com orgulho. “E do Irã e da Síria?”, pergunta o jornalista da rádio, citando os principais patrocinadores do Hezbolá no mundo árabe. “Nada”, responde o ministro de forma cortante.



Quinta-feira, 20 de julho.


Um dia de más notícias. Chamadas dos Estados Unidos para dizer-me que sou um anti-semita por criticar Israel. Aqui vamos de novo. Chamar de anti-semitas pessoas decentes logo acabará tornando o anti-semitismo algo respeitável, respondo a eles, e peço que digam à força aérea israelense que pare de matar civis. Um fax de um amigo judeu, da Califórnia, me diz que um tipo chamado Lee Kaplan – colunista do “Noticiário Nacional de Israel”, seja isso o que for, condenou-me por desenvolver “uma carreira altamente lucrativa de orador entre anti-semitas”. Diferentemente de Benjamin Netanyahu e muitos outros que me vêm à mente, jamais cobrei para dar uma conferência – jamais -, mas tachar de anti-semitas aos milhares de norte-americanos comuns que me escutam é escandaloso.



Outro fax vem do editor da próxima edição de meu livro, que se desculpa por me incomodar em um “momento tão difícil (sic)”, mas promete enviar-me provas da impressão pelo DHL, que ainda funciona em Beirute. Vou ao centro para confirmar com a empresa de entrega. Sim, me diz o funcionário, os pacotes com destino ao Líbano são enviados para a Jordânia e dali seguem de caminhão para Beirute, via Damasco. De caminhão, penso. Céus.



Sexta-feira, 21 de julho.


Os israelenses acabam de bombardear a prisão de Khiam. Um alvo interessante, porque é o cárcere no qual a antiga milícia aliada de Israel, o Exército do Sul do Líbano (ESL), torturava os prisioneiros atando-lhes eletrodos no pênis e, no caso das mulheres, nos seios, eletrocutando-os. Quando o exército de Israel se retirou, em 2000, o Hezbolá converteu a prisão em museu. Agora a evidência da crueldade do ESIL se apagou. Outro alvo “terrorista”.



A energia elétrica volta a minha casa às 11 da noite e vejo o cônsul geral israelense, Arye Mekel, declarar à BBC que Israel “faz um favor ao Líbano” ao bombardear o Hezbolá, e insiste que “a maioria dos libaneses aprecia o que estamos fazendo”. Agora entendo. Os libaneses devem dar graças aos israelenses por destruir suas vidas e sua infra-estrutura. Devem agradecer todos os ataques aéreos e crianças mortas. É como se o Hezbolá dissesse que os israelenses deveriam se sentir agradecidos por ele atacar o sionismo. Até onde pode chegar o auto-engano?



Sábado, 22 de julho.


Tomo café no jardim de meu caseiro, enquanto ele sobe a figueira com uma escada para baixar-me um prato de frutas. “Nos dá figos todos os dias”, diz. “Nos sentamos a sua sombra à tarde; a brisa do mar é como um ar condicionado”. Contemplo seu pequeno paraíso de plantas e bebo meu café árabe servido em uma pequena taça azul. Observamos os barcos de guerra deslizarem até o porto de Beirute. “O que acontecerá quando todos os estrangeiros tiverem ido embora”, pergunta. Isso é o que todos nós perguntamos. Saberemos na próxima semana.


 


* Jornalista inglês, correspondente do jornal The Independent no Oriente Médio
** Publicado originalmente no jornal The Independent; radução do espanhol: Marco Aurélio Weissheimer