Artigo: O que perde o teatro sem Gianfrancesco Guarnieri?

Com a morte de Guarnieri, vai-se parte do legado que se construiu a partir do Teatro de Arena, criado em São Paulo nos anos 50; vai-se também um modo de fazer teatro cujos vetores apontam para o futuro. Leia artigo.

Operário do teatro – O legado de Guarnieri


 


Por Flávio Aguiar


 


Dias atrás desapareceu Raul Cortez e comentei, na página da Carta Maior, que uma certa página do teatro brasileiro estava sendo virada. Pois ela está virando mais rapidamente do que eu imaginava. Com Cortez, desaparecia parte importante do legado dos atores que se formaram a partir da esteira do Teatro Brasileiro de Comédia, que operou uma espécie de ''revolução burguesa'' na cena paulista e nacional.


 


Agora, com Gianfrancesco Guarnieri, vai-se também parte do legado que se construiu a partir do Teatro de Arena, criado nos anos 50 como uma espécie de resposta ao estilo ''teatrão'' que os jovens viam como marca no TBC. Além de ator, Guarnieri notabilizou-se como um dos renovadores da dramaturgia brasileira nos anos 50, com Ariano Suassuna, Jorge Andrade, Nelson Rodrigues, Maria Clara Machado e outros.


 


Sua primeira peça foi seu primeiro retumbante sucesso: ''Eles não usam black-tie''. Escrita em 1955, estreou em 1958 no teatro de Arena, de São Paulo. A direção era de José Renato, o próprio Guarnieri fazia um dos papéis (o jovem Tião) principais, contracenando com Flávio Migliaccio, Eugênio Kusnet, Lélia Abramo, Miriam Mahler, Milton Gonçaves e outros do mesmo excelso naipe.


 


A peça não inventou o operariado na cena brasileira, nem mesmo a greve; mas era a primeira vez que ambos, operariado e greve, emolduravam e protagonizavam uma peça no teatro nacional. O protagonista, Tião, é um jovem favelado (a peça se passa no Rio) que, por pressões internas (medo do futuro) e externas (casamento à vista), torna-se um fura-greve, rompendo com o pai (Otávio, vivido por Eugênio Kusnet), que é um dos líderes do movimento paredista. Ao final, tendo que ''se exilar'' do morro, Tião rompe também com a noiva, que espera um filho seu.


 


Em 1981, a peça passou para o cinema; o cenário mudou-se para São Paulo, onde as greves do ABC eram recentes; e ironicamente Guarnieiri fazia o papel de Otávio.


 


Quando da estréia da peça, os elogios a ela dirigidos foram veementes. ''Juventude que se conscientiza, que participa intelectualmente de seu destino, que procura saber onde vai'': essas palavras foram de Paulo Francis, então um crítico de esquerda, publicadas na Revista Senhor de janeiro de 1960. Outras palavras do mesmo crítico: ''Ressaltei Guarnieri como expoente da consciência da arte a que estou mais ligado. Ele é um dramaturgo que transmite a urgência dessa tomada de posição, que a justapõe às acomodações de ordem individual, pedindo ao público que escolha entre as duas atitudes. E o faz carregando consigo a metrópole para o palco, indo ao centro do conflito. Marca o
despertar da geração de hoje''.


 


Seguiram-se mais uma vintena de peças (entre elas Gimba; Arena conta Zumbi; Arena conta Tiradentes; Castro Alves pede passagem; Um grito parado no ar; Ponto de partida, uma alegoria sobre a morte de Vladmir Herzog) e uma cópia de atuações no teatro, no cinema e na tevê. Guarnieri foi dos artistas que cresceu num momento em que o Partido Comunista Brasileiro tinha grande influência e presença na vida intelectual do Brasil. As pessoas não precisavam necessariamente ser filiados ou sequer simpatizantes do partido; mas gravitavam em torno de suas propostas, de suas análises, e de outras que gravitavam em torno do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e suas proposições nacionalistas.


 


No teatro, isso significava que ''O Povo'', assim em maiúscula, como ocorrera com o romance de 1930, estava sendo entronizado na cena como macro-personagem, protagonista, herói da vida brasileira. Ou, às vezes, como anti-herói, ou herói da sobrevivência, como no caso de O auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. E como mais tarde reconhecerá o crítico Décio de Almeida Prado, a encenação de Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, com música de Chico Buarque, pelo TUCA da PUC/São Paulo, levada a Nancy, na França, em 1966, se tornará o emblema dos novos destinos e da nova peregrinação dos povos do terceiro mundo.


 


Guarnieri sempre permaneceu fiel a esta moldura cultural e política em que ele se criou e, em suas peças, os momentos cruciais das trajetórias de seus personagens estão sendo ligados aos seus processos particulares de ''tomada de consciência'', um jargão dos anos 50 e 60 que definia não só a posição de autores, diretores e atores como um modo peculiar de relação entre o palco e platéia, no caso do teatro, do artista e do público, em todas as artes.


 


Os anos de neoliberalismo triunfante viram o declínio desse tipo de ''gesto artístico'', atacado como coisa do passado, dos dinossauros de antanho, preso a ideologias definidas peremptoriamente como anacrônicas. Mas ele não desapareceu, e as atuações de Guarnieri, que foram concentrando-se em torno de um tipo de personagem de espírito popular, ainda que pudesse eventualmente pertencer a outras classes.


 


Este é o seu legado que, ao contrário de pertencer ao arquivo morto do teatro brasileiro, faz parte de seus vetores que apontam para uma continuidade e, portanto, também para o futuro.


 


Um dos personagens mais característicos da interpretação de Guarnieri, e pouco lembrado hoje em dia, é o Dr. Salviano, da série Anos Rebeldes, criação de Gilberto Braga e Sérgio Marques, com direção do primeiro. Nesta série, com que a TV Globo tentou, ao fim dos anos oitenta, fazer uma espécie de neutrlização de seu passado promíscuo com a ditadura militar, o foco é de dois personagens jovens, Maria Lúcia (Marlu Mader) e João (Cássio Gabus Mendes), seus amores e desavenças, afastamentos e reencontros, de 1964 a 1980, mais ou menos, quando o último retorna ao Brasil, depois da anistia.


 


Essa série representou uma sucessão de passos significativos na apropriação da história brasileira recente. Em primeiro lugar, ela sacramentou uma visão segundo a qual os revolucionários socialistas que aderiram à luta armada nos anos 60 e 70, antes tratados pela mídia como facínoras, terroristas, fanáticos, bandidos, passaram a ser sacramentados como heróis, ainda que com equívocos, da redemocratização. Em segundo lugar, ela marcou a cena televisiva brasileira com uma série de atuações notáveis que – algumas – jamais se repetiram com tanto brilho e qualidade. José Wilker, por exemplo, foi notável como o empresário inescrupuloso Fábio, cuja filha, Heloísa, deu margem a uma interpretação inigualável de Cláudia Abreu como a burguesinha alienada que passa à luta armada e morre de forma estupida, metralhada por um soldado numa barreira policial, ao tentar a fuga. Em terceiro lugar, a série marcou uma forma de narrar adequada a um grande público, e um público jovem, de fatos da história recente que ficavam até então numa espécie de limbo de esquecimento, salvo em ambientes acadêmicos, militantes ou que tinham vivido aqueles momentos.


 


O dr. Salviano, de Guarnieiri, é um papel secundário. Médico e amigo da família de Maria Lúcia, Salviano tem uma consciência abrangente mas fluida do que está acontecendo no Brasil. O personagem radicaliza-se a ponto de, na segunda parte da história, reaparecer como ''o Doutor'', chefe do seqüestro do embaixador suíço, tendo, portanto aderido à luta armada. Em ambas as faces do mesmo papel, Guarnieri empresta ao personagem aquele seu ar característico, de olhos grandes e olhar que nunca perde algo de melancólico, e que encarna a visão de um personagem de ''o povo'' que é permanentemente ferido pela história, mesmo quando tem momentos de fugaz triunfo, como no caso do seqüestro que dá certo e liberta 70 prisioneiros da ditadura. Vale lembrar, no entanto, que esse ''Doutor'' representava na trama da série o ''Velho'' Toledo, que comandou a operação na vida real e acabou sendo morto pela ditadura em São Paulo tempos depois.


 


Hoje, esse estilo de Guarnieri na encarnação do espírito popular em seus personagens pode nos parecer deslocado, porque estamos mais acostumados aos cenários e estilos de comportamento de um Cidade de Deus, por exemplo. Mas ele soube fixar um ''modo de ser'' indelével na cultura brasileira.