Sem categoria

A cultura brasileira em rede

Por André Cintra*

Que os agentes da cultura popular deixem de ser coadjuvantes — ou, pior, figurantes — e se tornem protagonistas. Que as mais diversas manifestações da arte brasileira se envolvam numa megarrede de intercâmbio. Que artistas de fora d

É o maior evento do gênero no Brasil — e uma das principais apostas do Ministério da Cultura. De 6 a 9 de abril, vai reunir mil representantes da cultura nacional, mil produtores culturais e 600 empreendedores do projeto Economia Solidária. De acordo com Roberto Malta, coordenador geral da Teia, espera-se um público de 50 mil visitantes. A entrada é gratuita. Muito além dos números, o que sobressai é a viabilização de dois compromissos do governo Lula e do ministro Gilberto Gil: reconhecer e promover a produção popular. “A cultura brasileira”, já assinalou o ministro, “é feita pelo povo brasileiro, e não por um punhado de pessoas que se julgam esclarecidas e detentoras do sentido e do destino histórico do país”.

 

Não por acaso, a ousada gestão de Gil tem sido alvo de constantes ataques — da burguesia cultural, dos representantes do cinemão, dos artistas de ponta, de setores mais atrasados da classe média. Nestes 40 meses à frente do ministério da Cultura, o cantor e compositor baiano efetivamente inverteu a lógica das políticas culturais: em vez de priorizar a indústria cultural e os grupos financeiros que reinavam nos bastidores das artes, pôs em relevância a “expressão mais legítima e espontânea de um povo”.

 

Não é uma decisão fácil, ainda menos num país acostumado a visões obscurantistas ou reacionárias quando o assunto é cultura. A penosa passagem pelo regime militar pareceu não sensibilizar os presidentes seguintes. Sarney, por exemplo, cedeu aos chiados dos setores mais conservadores da sociedade, especialmente os católicos, e proibiu a exibição do filme Eu vos Saúdo, Maria (Je vous salue Marie), do francês Jean-Luc Godard. Isso em 1986, quando os ecos de censura davam sinais de esgotamento.

 

Pior foi Collor, avesso por completo à cultura brasileira — fosse ela elitista ou popular. Já no primeiro ano de seu desastrado governo, liquidou entidades da área, em ações que, a um só tempo, retaliavam o setor cultural (majoritariamente pró-Lula nas eleições de 1989), estendiam seu projeto de desregulamentação do Brasil e agradavam à indústria imperialista. A produção nacional sofreu um revés sem igual. As expectativas em torno de FHC e seu ministro da área, Francisco Weffort, foram igualmente frustradas, já que a cultura continuou a serviço do mercado.

 

Em face desse histórico pós-ditadura militar, impressiona que o ministro da Cultura mais sensível às camadas populares seja um artista consagrado, de freqüente exposição na mídia e, de certo modo, vinculado à indústria. Gilberto Gil se converteu numa surpresa — positiva! — do governo Lula. Cultura, segundo ele, “não é uma estrutura já definida e cristalizada, mas um processo, um continuum múltiplo e contraditório, paradoxal até, que existe ao ar livre, fora do ‘freezer’, e não se contém em compartimentos imóveis. Cultura é sinônimo de transformação, de invenção, de fazer e refazer, no sentido da geração de uma teia de significações que nos envolve a todos, e que sempre será maior do que nós, em seu alcance e em sua capacidade de nos abrigar, surpreender e iluminar”.

 

Na página on-line do Ministério da Cultura, reforçam-se esses princípios, em nome de um projeto nacionalista e soberano: “Ao assumir e reconhecer [a] fundamental importância (da cultura popular) para a construção de uma identidade nacional que compreenda toda a diversidade das manifestações do Brasil, o Governo Federal dá um passo importante em direção ao fortalecimento de uma consciência cidadã no país”.

 

Pluralidade com qualidade – É possível, dessa forma, analisar a Teia, em sua ampla e pluralista programação, como um dos pontos mais luminosos, um marco histórico, da gestão de Gil e do governo Lula na cultura. Nunca tantos personagens das artes haviam se reunido num evento nacional. Há representantes de todas as unidades federativas, de numerosos estilos e tendências, das expressões mais díspares. Em comum, pretendem estabelecer pontos de contatos com a comunidade, usando a arte para se chegar à cidadania.

 

Teia, na realidade, é reflexo de outra iniciativa bem-sucedida do ministério: o Programa Cultura Viva, do qual participam 450 centros de expressão (os chamados Pontos de Cultura), em regiões desertas dos holofotes da mídia. São lugares periféricos e invariavelmente desconhecidos — assentamentos rurais, aldeias indígenas, comunidades quilombolas, etc. O governo federal quer atingir a marca de 600 Pontos Culturais até o final de 2006. Eles recebem ajuda financeira (de até R$ 150) e um kit multimídia (computadores, acesso à Internet em banda larga, ilha de edição e estúdio de gravação). Com isso, podem registrar seus trabalhos e disseminá-los.

 

Pouco mais de cem Pontos vão participar da Teia. O encontro permitirá um mapeamento inédito dessas e de outras iniciativas socioculturais. Lado a lado com manifestações das artes tradicionais (cinema, teatro, fotografia, pintura e literatura), a Teia terá oficinas, palestras e debates, bem como atrações de circo, congado, capoeira, repente, grafite e tambores. A envergadura do evento fica clara também pelos órgãos e pelas entidades que o promovem: realizada pelo SESC-SP e pelos ministérios da Cultura e do Trabalho, tem patrocínio da Petrobrás e apoio do Sebrae, do Instituto Paulo Freire, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do Museu Afro-Brasil.

 

Nas palavras de Gil, consiste num “evento transgovernamental, além das dimensões do público e do privado. Trata da dimensão do comum”. A Mostra Artística da Teia, instalada no Pavilhão da Bienal e em seu entorno, apresenta artistas e grupos de cidades desconhecidas até mesmo em seu estado. De Nova Olinda (CE), vem a Fundação Casa Grande — Memorial do Homem do Kariri. Fundada pelo músico Alemberg Quindins — primeiro como museu, depois também como escola —, promove a inclusão de dezenas de crianças e adolescentes, de 3 a 18 anos, em pleno sertão cearense. São oferecidas aulas de história da comunicação e oficinas de teatro e música. As crianças ganharam tal autonomia que trabalham com turistas e até elaboram a programação.

 

Iguape, no litoral sul paulista, está representada pela AJJ (Associação dos Jovens de Juréia). Sua militância é exemplar. Desde 1986, com a criação da Estação Ecológica Juréia-Itatins, a população caiçara vive sob ameaça de expulsão da comunidade. A resistência desse povo primitivo levou à criação, em 1993, da AJJ, que levou cidadania, apoio e educação aos caiçaras. Um dos pilares mais fortes do grupo é a reafirmação da auto-estima, com a valorização da rebeca, da viola e de outros elementos típicos.

 

A Teia ajudará em tais processos de busca de identidade, legitimando as manifestações populares, seus valores, ideais e anseios. Como a Rede Brasil de Produtores Culturais Independentes deixa claro, o evento tentará “mostrar a cultura nacional que vive e pulsa fora dos grandes centros”. É uma iniciativa que merece o apoio dos cidadãos brasileiros, do povo em geral — de todos que buscam a riqueza nacional por meio de sua expressão mais genuína. Teia é, de antemão, um parâmetro para qualquer projeto presente e futuro de emancipação no Brasil.

 

* Editor de Movimentos Sociais e de Cultura

 

 

Confira tudo sobre a Teia em www.teiacultural.org