África e seus netos discutem em Salvador a saga da diáspora

Por Bernardo Joffily


Salvador da Bahia sedia entre hoje (12) e sábado, a 2ª Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora (Ciad). Não é um acontecimento qualquer. É a primeira vez que se discute em um evento deste porte, no Novo Mundo (a

Os netos dos africanos escravizados que para cá foram trazidos nos navios negreiros, ou tumbeiros, compõem hoje uma parcela considerável dos povos americanos. Em alguns países, como o Haiti e a Jamaica, são a esmagadora maioria da população. Em outros formam uma expressiva minoria, como os EUA, onde são perto de 40 milhões. No Brasil predominantemente mestiço – de uma mestiçagem talvez sem paralelo –, é provável que sejam maioria. Como o são certamente em Salvador, a maior cidade negra fora da África.


 


3,5 séculos de tráfico negreiro


 


Em um leitura mais ampla, é possível dizer que toda a espécie humana compõe uma grande diáspora africana. As últimas descobertas da ciência atestam que o homo sapiens nasceu de um tronco único, no Continente Negro, provavelmente no vale do Rift, no Quênia atual.


 


A diáspora que ocupa a Conferência de Salvador, porém, tem um sentido mais preciso: é aquela provocada pelo tráfego negreiro, nos três séculos e meio desde 1502, quando os primeiros africanos escravizados chegaram na Ilha de São Domingos (Antilhas), até outubro de 1855, data do último desembarque conhecido de um tumbeiro, em Serinhaém, Pernambuco (uma detalhada Cronologia da Escravidão na América, em espanhol, está disponível em http://www.ensayistas.org/antologia/XIXE/castelar/esclavitud/c-esclavitud.htm ).


 


O arquipélago cultural africano


 


Neste período, calcula-se que 12 milhões de africanos escravizados aportaram no Novo Mundo. E a população da África permaneceu estagnada, em cerca de 100 milhões de habitantes, pois, para cada pessoa aqui chegada como cativo, várias morriam no transporte, ou principalmente nas guerras fomentadas pelos tumbeiros. A diáspora teve portanto uma enorme importância para a África, assim como para as três Américas. E a ela se somaram, a partir da segunda metade do século passado os seus ramos mais novos na Europa Ocidental (França, Rreino Unido, Portugal).


 


A despeito dos horrores que o marcaram, este processo criou também um arquipélago cultural africano de notável vigor. Os que se interessam por estatísticas  lembrarão que a África é o mais pobre dos continentes, e o que menos se desenvolve, castigado por guerras e pela pandemia da aids. E que em todos os países das Américas os negros e mestiços têm menor renda, maior taxa de desemprego, menos acesso à saúde e educação.


 


Uma superpotência musical


 


Estes fatos reais convivem, porém, com outros que igualmente merecem atenção. Por exemplo: pouco depois que se criou a indústria de massa da música (com o fonógrafo, o disco e o CD, o cinema falada, a TV e a internet), e esta globalizou-se, a diáspora africana a hegemonizou, e até hoje.


 


O jazz e seu primo mais jovem, o rock, o samba, o frevo, o axé, o reggae, o mambo, a salsa, o merengue, a cúmbia, e até a recentemente descoberta música da Cabo Verde de Cesária Évora, constituem uma superpotência musical. Que outra matriz cultural detém tantos discos de ouro e platina no planeta? E quem negará o seu parentesco, que tem tudo a ver com a diáspora negra?


 


Se alguém duvidar, que dê um passeio pelo Pelourinho, em Salvador, e conte quantas camisetas de Bob Marley estão expostas. O reggeiro jamaicano faz sucesso tão longe de casa, assim como prosperam os ramos paraense e maranhense do reggae, e assim como os astros da MPB são gente de casa em numerosos países africanos. E o denominador comum é, só pode ser um – a diáspora africana.


 


Washington não mandou representante


 


Tudo isso acontece e prospera sem que se reflita muito a respeito. A Ciad não é portanto uma dessas siglas engenhosas que a diplomacia cria às vezes, mas uma necessidade palpável, a reclamar atenção, debate, consideração. É o que os 2 mil participantes da Conferência pretendem fazer até sábado em Salvador. Já era hora do mundo da intelectualidade e das instituições oficiais se debruçar um pouco mais sobre uma realidade tão rica e palpitante.


 


A julgar pela lista de participantes, há uma percepção diferenciada dessa necessidade. O presidente Lula, como anfitrião, marcou presença, assim como vários chefes de Estado e de governo, e ministros, principalmente da Cultura, como o brasileiro Gilberto Gil e o cubano Abel Prieto.


 


Já o governo dos EUA não se fez representar. A segunda maior diáspora negra das Américas está presente na Conferência mas por meio de expoentes da sociedade civil, como o cantor e ativista do movimento negro Steve Wonder.