Chico fala ao `Le Monde´ de samba, romances e futebol

O jornal francês Le Monde publicou sábado (8) esta entrevista com o compositor brasileiro:

 

“O Brasil quer repousar de nossos terríveis carinhos”, brinca sorrindo o intelectual brasileiro Chico Buarque

Estamos em 21 de junho, o Brasil ainda quer ganhar a Copa do Mundo de 2006, é a Festa da Música, sob as janelas parisienses de um músico que o diário espanhol El País acaba de comparar com Bob Dylan e Jacques Brel, pela força de suas letras.
Na Copa: melhor brio que esperteza
“Em 1950, eu era menino, fui ao Maracanã”; o Brasil foi esmagado pelo Uruguai. Belamednte. “ganhar jogando mole como em 1994 não tem nenhum interesse. O que conta é a arte. Eu prefiro perder com brio que ganhar com esperteza.”  Os brasileiros, em 2006, perderam com esperteza. O samba e o “futebol” [ainda em português”] têm em comum a arte do drible, do gestuário, do brio, do desafio.
Chico Buarque, filho de universitário, interrompeu há 40 anos seus estudos de arquitetura para tratar de música popular. “A Banda”, canção-emblema dos anos de chumbo – ela data de 1966, a ditadura militar de 1964 –, celebra a atração ingênua do povo brasileiro pela festa da simples beleza.
Mas Chico Buarque é também um erudito da língua portuguesa, como testemunha “Construção”. Este grande sucesso (de 1971), relatando a jornada trágica de um operário da construção, é inteiramente construido sobre palavras com acento na última sílaba.
Um mito sul-americano
Hoje, Chico, 62 anos, tornou-se um mito sul-americano, espécie de figura obrigatória das artes ditas menores. “Menores, mas menores a fundo”, dizia Claude Nougaro, que admirava Chico Buarque e versara o sensual “Que será”, sob o título de “Tu veras, tu verras”.
Assim, o homem é intimidante, mas tímido, introvertido, um pudico. Intimidades são imediatamente varridas por este olhar azul, penetrante, a voz excepcionalmente grave, aflautada quando canta. Este homem magro, espigado, entrou para a literatura em 1991, publicando romances cujos heróis submergem num espécie de irrealidade constante.
Este inveterado jogador de futebol [agora já em francês] vem de gravar “O Carioca”, seu 53º disco, caso contemos o teatro, o cinema, as comédias musicais, etc. Ele viajou à Alemanha, para o mundial de futebol, claro, mas também para cantar em público, o que não fazia há sete anos. Em Paris, no seu apartamento do bairro do Marais, Chico Buarque come cerejas com prazer. Passageiro urbano, cujo último romance chama-se “Budapeste” – todos os personagens têm nomes do mítico time húngaro de 1954 –, sabe encontrar instantes de encantamento dentro da língua portuguesa.
Da França, da Itália…
“Adoro Paris, porque adoro andar, e andar é trabalhar. Depois, vim aqui com meus pais, aos oito anos, e quando vi os posters de mulheres nuas, em Pigalle, que choque! E havia o cinema francês, único no mundo, muito despido, com Martine Carol com os peitos de fora! Até então eu só tinha visto os de minhas irmãs; era uma beleza.”
Da Holanda Chico só tem o nome, porém tem muito da Itália. Lá viveu com os pais, para lá partiu em 1969, ameaçado pela ditadura, e lá nasceu sua filha mais velha, Sílvia. “Da França também, herdei a cultura, muito presente no Rio”, diz.
Francisco, dito Chico, é um Buarque de Holanda, o do meio entre sete irmãos e irmãs. O pai, Sérgio (1902-1982), um dos maiores historiadores do Brasil, era “um catedrático engraçado, que contava aos filhos anedotas divertidas, como o imperador dom Pedro se barbeava…”
Uma mãe de ferro, Marfia Amélia, 90 anos bem vividos, sempre apoiando o Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula,  apaixonada pela cultura francesa, pela boa educação, pela tolerância no futebol, e que levava os filhos às partidas do Fluminense, o time da família. As irmãs, noras, cunhados, genros, são todos cantores (Miucha, Cristina, Joao Gilberto, Bebel Gilberto, Carlinhos Brown…); e há ainda cinco netos.
Declaração de voto
Chico tem sofrido com a situação “periférica” ocupada, segundo ele, pelo Brasil. Seus silêncios irrecorríveis, suas eclipses, sua absoluta falta de sentido de marketing contribuiram para minimizar seu gênio. Na Europa, seu nome apareceu pela primeira vez com “Morte e Vida Severina”, montagem teatral de um longo poema de João Cabral de Melo Neto, apresentado no Festival de Teatro Universitário em 1965. Reapareceu em 1988, com um comercial para Schwepps (“Essa moça tá diferente”, uma canção alegre de 1972). Na França, apresentou-se em poucos shows, no Brasil também. Cobra isto dele.
Chico Buarque votará em Lula no fim de 2006,  apesar dos escândalos que macularam o PT e o governo. “No Brasil, entre outros países, a cultura da corrupção está em toda parte. É verdade, houve um erro; mas quanto furor contra Lula! Sua classe social pesa. Tratam-no de ignorante, analfabeto, como se fosse o fim.”
Dribles na censura
Autor sutil, foi censurado pelos militares. Proibiram o disco “Calabar, ou o elogio da traição”, comédia musical reabilitando Calabar, figura de traidor na guerra entre o colonizador português e o colonizador holandês. Mas ao jogar com as palavras ele muitas vezes deixou seus censores atônitos e o povo contente.
Em 1984, quando o general João Figueiredo estava para se retirar, Chico compôs “Vai passar”: um desfile de carnaval para um asilo de velhos. O Brasil inteiro dançou esta mordaz marchinha contra a gerontoicracia.
Chico Buarque cresceu em São Paulo, mas nasceu no Rio. Tem o humor boêmio típico do carioca. É com o sentimento que descreve a outra face de uma cidade amiúde percebida a partir da Zona Sul, de Copacabana, Ipanema e Leblon, onde o cantor mora hoje. Ele ouve noite e dia os sons muito próximos dos “morros” [em português no original], com suas favelas: “Vozes, rumores, barulho de metralhadoras”; e também outros, mais antigos, da periferia que é epicentro “do samba, do choro, dessas músicas que me fizeram, e que são o espírito do Rio”.
Fonte: Le Monde