Resenha: “O Livreiro de Cabul” critica a sociedade afegã

No livro de Asne Seierstad, as contradições do livreiro abrem espaço para uma reflexão aprofundada sobre o papel da mulher ou sua ausência na sociedade afegã. Confira resenha de Helena Sut.

Ler um bom livro é como um casamento selado entre a memória e a história desentranhada das palavras. Uma imagem inesquecível que permanece arraigada nos pensamentos como uma vivência a compor as circunstâncias.

Começo a ler “O Livreiro de Cabul” pelo título. Penso que o livreiro é quase como um vendedor de sonhos… Com a história e as ideologias resguardadas nas prateleiras, ele é o guardião da sabedoria, capaz de difundir no mundo um novo significado com o olhar poético ou crítico para os caminhos das civilizações… Mas logo no primeiro capítulo, percebo que o protagonista não é exatamente um livre pensador como se autodefine, é um homem preso às tradições e aos costumes que atravessa os regimes que devastaram o Afeganistão em guerras, ódios e intolerâncias, preservando o romance na ficção e conduzindo a sua família com a tirania estereotipada do mundo islâmico.

As contradições do livreiro abrem espaço para uma reflexão aprofundada sobre o papel da mulher ou sua ausência na sociedade afegã. Não há como não se abater a angústia da primeira mulher deposta pela idade, o sofrimento da segunda que, aos dezesseis anos, deve se submeter ao casamento com um velho, a escravidão da irmã mais nova, a ausência de horizontes da anciã, o pesar no nascimento das meninas… Enfim, o enclausurado mundo feminino, representado com a sombra silenciosa e desbotada da burca, prolonga-se com a ausência de atrativos num tempo fadado à repetição e ao abandono.

A história do Afeganistão e o radicalismo do regime do talibã já foram amplamente divulgados após o fatídico 11 de setembro, mas os dedos decepados ao serem flagrados pintados com esmaltes; os passos femininos rentes ao chão para não serem percebidos pelos homens; a proibição do aprendizado ou do exercício de uma função, e as outras tantas privações e violências a que estão sujeitas às mulheres, narradas pela autora, ainda causam calafrios e se entranham na memória como uma pungente realidade que por tanto tempo ignoramos.

Eis que a palavra tira a máscara e nos mostra a literalidade das percepções. O vocábulo afegão para noiva e boneca é o mesmo: ARUS. Na noite da hena, na véspera do casamento, a noiva deve permanecer distante, com o olhar fixo em frente, sem mostrar alegria ou tristeza, é uma boneca a ser apresentada ao mundo onde deverá permanecer artificial, deixando a sociedade conduzir suas emoções e ações. Da mesma forma como a mulher foi sufocada sob as burcas, condenada a ser desembrulhada apenas sob os caprichos do dono, a polícia religiosa do talibã, invadia os lares e destruía as bonecas (brinquedos) com requintes de crueldade em frente às crianças por elas representarem pessoas.

Acabo a leitura e folheio o livro cheio de marcações. O livreiro Sultan Khan, protagonista, é na verdade um antagonista a ser dissipado na grandeza do olhar dos grandes escritores e poetas para o feminino ou na força das mulheres que se destacam nas diversas áreas em que atuam, como a jornalista °Asne Seierstad, autora do livro.

É evidente que o livro nasce sob o olhar da autora, uma mulher norueguesa, jornalista, acostumada a ser sujeito de suas relações e ações, mas o enredo é baseado nos relatos que ouviu durante os três meses em que esteve hospedada na casa do livreiro, no dia a dia da família distanciada dos enredos das obras guardadas pelo livreiro.

Com a publicação de "O Livreiro de Cabul", o livreiro que inspirou o personagem Sultan Khan quis processar a autora, mas se rendeu em um acordo para publicação da sua versão Eu sou o livreiro de Cabul pela mesma editora. Ponto para literatura! Os leitores aguardam para conhecer a outra versão.