Eric Hobsbawm fala do “paradoxo da Copa do Mundo”

Há “um paradoxo” na situação em que “o apelo global do futebol, que cria o enorme público de quem corporações como a Nike tiram seus lucros, está baseado no apelo nacional do jogo. A Copa do Mundo &eacut

Hobsbawm é um torcedor e também um arguto analista do que chamou “esta religião que se estendeu por todo o mundo durante a segunda metade do século 20”. Ao fazer um retrospecto das manifestações culturais do século, no livro “Era dos Extremos”, escreveu: "Quem, tendo visto a seleção brasileira em seus dias de glória, negará a pretensão do futebol à condição de arte?". Veja a íntegra:


Carta Maior
– Durante um evento como a Copa do Mundo, principalmente no Brasil o patriotismo aflora com enorme força, o país inteiro veste as cores na nação, as bandeiras brasileiras estão por toda parte, e diferenças sociais e políticas parecem desaparecer por algumas semanas. O que o senhor acha deste tipo de patriotismo?


Eric Hobsbawm
– A capacidade do futebol de ser um símbolo de identidade nacional há muito é conhecida. No meu livro sobre nacionalismo eu escrevi que “a comunidade imaginária de milhões parece ser mais realista do que um time de onze pessoas”. Atualmente, indubitavelmente isto é mais importante do que nunca na história, já que grandes jogadores são recrutados de quase todos os cantos do mundo. Acho que só participar de uma Copa do Mundo é que faz as pessoas que vivem no Togo ou em Camarões se darem conta que são cidadãos de seus países. Posso entender o apelo deste tipo de patriotismo, mas eu não tenho entusiasmo nenhum pelo nacionalismo.


CM –
No dia da abertura da Copa, o Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, escreveu um artigo onde dizia invejar o evento, começando pelo fato de que a Fifa tem 207 membros, contra 191 das Nações Unidas. Para ele, a Copa “é um evento no qual todos conhecem seus times e o que eles fizeram pra chegar até lá. Gostaria que tivéssemos mais competições desse tipo na família das nações. Países competindo pela melhor posição na escala de respeito aos direitos humanos, um tentando superar o outro nas taxas de sobrevivência infantil ou de ingresso no ensino médio. Estados fazendo performances para o mundo todo assistir. Governos sendo parabenizados pelas ações que levaram àquele resultado”. O que você achou deste discurso?


Hobsbawm –
Eu posso entender porque Kofi Annan quer usar a Copa do Mundo em benefício da ONU, mas eu acho que obviamente ele não acredita na possibilidade de países competirem por mais e melhores direitos humanos, como competem pela vitória num campo de futebol. De mais a mais, a vitória de um país sobre o outro não é o objetivo nas Nações Unidas.


CM –
Grandes corporações, como a Nike e a Coca Cola, fazem muito dinheiro com a Copa. Nos bastidores, a Nike, que patrocina alguns dos mais famosos jogadores, como Ronaldo, foi até acusada de influenciar a decisão do corpo técnico dos times no quesito quem entra em campo e aparece na TV para o mundo durante a partida, mesmo que o desempenho do jogador em questão não esteja às alturas. Como o senhor analisa o poder destas empresas e seu envolvimento na organização de um evento esportivo tão importante?


Hobsbawm –
Eu não sei o quanto as grandes corporações que patrocinam a Copa influenciam de fato a condução dos jogos, portanto não tenho opinião sobre esta questão. Certamente estas empresas têm grande influencia sobre a formatação da competição, os horários dos jogos, etc, e, claro, a visibilização de seus logotipos e produtos. Por exemplo, a Fifa de fato forçou torcedores holandeses a trocar de calças porque as que usavam tinham o logo de uma cerveja holandesa que compete com a Budweiser, patrocinadora oficial da Copa. No entanto, a relação da Copa com o moderno capitalismo globalizado é mais complexa do que isso. Ou seja, a industria atualmente é altamente globalizada e não poderia subsistir na atual escala sem a existência de um capitalismo global de mídia.

Mas o futebol, no geral, está dominado por alguns poucos times europeus, como Manchester United, Real Madrid, Milan, etc, que desde os anos 1980 recrutaram seus jogadores em todos os cantos do mundo. Alguns outros times na Europa fazem seu dinheiro descobrindo talentos no exterior, comprando-os barato e revendendo-os para os grandes. Isso tem acontecido muito com jogadores brasileiros e argentinos, por exemplo. Mas o paradoxo desta situação é que o apelo global do futebol, que cria o enorme público de quem corporações como a Nike tiram seus lucros, está baseado no apelo nacional do jogo. A Copa do Mundo é o mais dramático exemplo disso. Aí está a contradição. As implicações políticas, econômicas e sociais dessa situação, no entanto, nunca foram adequadamente analisadas.


CM –
O senhor acredita que a Copa do Mundo tem algum caráter político, bom ou ruim?


Hobsbawm –
A Copa em si provavelmente não tem nenhum fundo político em particular, mas assim como as Olimpíadas, é quase certo que esteja vulnerável à pressões e promessas diplomáticas ou de outra natureza dos países mais poderosos. Infelizmente, vencer a Copa deve certamente beneficiar o regime do país, como aconteceu na Argentina durante a ditadura militar, independente, inclusive, das posições políticas de seus jogadores. A gente só pode esperar que os campeões da Copa do Mundo tenham regimes aceitáveis. Também existe a possibilidade de que, em países pequenos e periféricos, jogadores de destaque se tornem também importantes figuras públicas; como no caso da Libéria, onde um jogador foi candidato a presidente da República.


CM –
Por fim, gostaria que o senhor comentasse as preocupações com ataques terroristas durante a Copa, principalmente em relação ao time dos EUA, o mais bem protegido entre todos na Alemanha.


Hobsbawm –
Estou certo de que as forces de segurança européias estavam certas em suspeitar de possíveis ataques terroristas ao time americano ou, mais genericamente, à Copa. Afinal, existe o precedente do ataque aos atletas israelenses nas olimpíadas de 1972. Mas obviamente eu não tenho como saber se alguma organização planejou alguma ação este ano.

Fonte: www.agenciacartamaior.uol.com.br