Embaixador chinês: “alguns só querem globalizar os outros”

Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo nesta segunda-feira (19), o novo embaixador da China em Brasília, Chen Duqing, recordou uma frase do diplomata brasileiro Jório Dauster: “Alguns só querem globalizar os outros, não querem ser

Aos 59 anos, Chen começou e deve terminar sua carreira diplomática no Brasil. O país foi o primeiro onde ele serviu, 34 anos atrás. Agora, deve se aposentar depois de comandar a mesma embaixada. Chen passou 15 de sua carreira fora da China, dez dos quais no Brasil. Foi também embaixador da China em Moçambique e Timor Leste. Veja a entrevista:


Folha de S. Paulo
: O que mudou na relação Brasil-China desde a primeira vez em que o sr. esteve aqui?


Chen:
O estabelecimento das relações diplomáticas, em 1974, foi uma decisão de grande visão. Mas naquele momento as circunstâncias não permitiam, tanto do lado de cá como do lado de lá, que as relações se desenvolvessem com ímpeto. A China estava mergulhada na Revolução Cultural e aqui havia certa suspeita de que a China poderia exportar a revolução para cá. As relações evoluíram muito e basta citar o dado do comércio. Em 1974, o comércio bilateral era de apenas US$ 17,4 milhões. No ano passado, segundo nossas estatísticas, ele pulou para US$ 14,8 bilhões. Mesmo pela aduana brasileira, o valor superou US$ 12 bilhões. A parceria estratégica entre os dois países já não é abstrata e a cooperação ocorre em todos os segmentos. O acordo para satélites é uma cooperação exemplar entre dois países em desenvolvimento.


Folha
: Em 2004, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou a China e o presidente Hu Jintao veio ao Brasil, falou-se muito de investimentos da China no Brasil. Por que eles não se concretizaram?


Chen:
Projetos de infra-estrutura têm seu processo, que começa com o estudo de viabilidade, estudos comparativos e análise das condições de cada projeto. Acho que os amigos brasileiros são muito ansiosos por um lado e imediatistas por outro. Na China, temos planos de longo prazo. Mas há uma coisa que todo mundo conhece que é o custo Brasil, que o brasileiro entende melhor do que eu. Outra coisa que gostaria de mencionar é que, em termos de abrir sua economia, o Brasil está atrasado em relação à China.


Folha
: O Brasil é menos aberto?


Chen:
Menos aberto. A China recebe anualmente US$ 60 bilhões de investimento estrangeiro direto. O Brasil não está conseguindo. A economia, cada vez mais, é globalizada. Uma coisa que eu noto é que o milagre brasileiro, do fim de 60 e meados de 70, já foi. A infra-estrutura era muito bem vista e, agora, se mostra obsoleta.


Folha
: Já na China…


Chen:
Está muito avançada. A China poderia ser um bom parceiro em grandes projetos. Precisa talvez do trabalho conjunto dos dois empresariados e do estímulo dos governos. Eu gostaria de lembrar que a Sinopec [estatal chinesa de petróleo] ganhou a licitação para o primeiro trecho do Gasene [gasoduto que ligará o Sudeste ao Nordeste]. E o Banco de Exportação da China está disposto a financiar o restante da obra. A China não está falando por falar. Quando falamos de financiamento, temos de discutir os termos e isso leva tempo. Não se passaram nem dois anos da visita dos dois presidente em 2004.


Folha
: O sr. assume quando crescem as críticas à China dos empresários brasileiros, que pedem salvaguarda contra produtos chineses.


Chen:
Quando falamos de globalização eu me lembro de uma frase do embaixador Jório Dauster, de que alguns só querem globalizar os outros, não querem ser globalizados. A globalização é uma faca de dois gumes. Exportação e importação têm dois lados. Como a taxa de câmbio: quando muda, tem dois sentidos. Quando cresce a favor da moeda nacional, dificulta a exportação e facilita a importação. Quando a China entrou na OMC [Organização Mundial do Comércio], houve pressões e tivemos que fazer certas concessões. Nós entendemos que as salvaguardas devem ser aplicadas em último caso. Nas trocas bilaterais, o Brasil é superavitário. Para um país com superávit, é até estranho acusar o outro lado de fazer dumping. Mesmo que houvesse dumping, vamos fazer um inquérito, o que é natural. Mas não se pode usar a salvaguarda como uma espada de Dâmocles pairando acima da cabeça: "Se você fizer isso, eu vou…". Isso não ajuda nada.


Folha
: A eventual aplicação de salvaguardas pode prejudicar o relacionamento bilateral?


Chen:
Acho que não. Mesmo se houver a aplicação, isso implica um processo de investigação. Não é uma coisa imediata. Agora, os empresários brasileiros querem vender mais produtos manufaturados para a China. Só que tem que ver. Antigamente, a China não produzia carros e comprava muitos do Brasil. Agora, a China já produz carros. Como vai importar? Mas auto-peças, os dois lados fornecem um ao outro. Antes comprava cinescópio, TV. Agora a China fabrica cinescópio e televisões de plasma de primeiríssima qualidade. A China está evoluindo.


Folha
: A China produz quase tudo com preços competitivos. Existe algum produto manufaturado que o Brasil possa vender para a China?


Chen:
No mês passado eu estive em São Paulo em um jantar com o presidente da Abimaq [Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos], Newton Mello, e ele me disse que as máquinas de maior valor agregado são vendidas para a China, no valor do que o Brasil importa da China. A China vende em maior quantidade, por preço mais baixo, e o Brasil vende menor quantidade, por preço mais alto. Neste mês, a Abimaq vai abrir um escritório na China. Ela não vai só comprar, vai vender também. Esse é o caminho a seguir. Das 500 maiores multinacionais do mundo, 90% têm filiais na China. Às vezes, não é o produto chinês que está sendo vendido para o mundo. São multinacionais. A China só fica com uma pequena parte de mão-de-obra.


Folha
: Mas agora a China está registrando superávit com o Brasil.


Chen:
Durante 32 anos, a China só teve superávit em quatro ou cinco anos. O superávit atual é momentâneo. O dólar baixou, o real ficou mais forte e ficou mais fácil importar. A China não está vendendo à força. São importadores brasileiros que estão querendo comprar mais. Até o fim do ano, a China vai comprar muito [do Brasil].


Folha
: Qual a importância da América Latina para a China?


Chen:
A nossa política externa tem alguns lemas. É evidente que os grandes países são importantes. Mas os países em desenvolvimento são a base do nosso serviço diplomático. A América Latina, no nosso tabuleiro de relações comerciais, ainda não tem o peso que deveria ter. Existe grande espaço para que a China trabalhe junto com os países da região. Talvez isso desperte receio infundado em alguns países que acham que a América Latina está em sua área de influência. Mas esses são conceitos antiquados. Com a globalização, você tem toda a liberdade de se movimentar, de fazer negócios. O comércio entre a China e a América Latina está em torno de US$ 40 bilhões. Tem de aumentar muito. O comércio entre a China e o Brasil, pela nossa estatística, foi de US$ 14 bilhões, que é só 1% do comércio exterior da China. O Brasil é o maior produtor de café do mundo, só que os americanos vendem mais café que o Brasil na China. Eles investiram na propaganda. Todo mundo sabe que o café brasileiro é bom. Se o café puder entrar na China da mesma forma que o futebol, que chega ao coração do chinês, vai ganhar muito.


Folha
: É justificada a preocupação dos EUA com a aproximação entre China e América Latina?


Chen:
Não. A presença cada vez maior da China na América Latina só vai trazer benefícios para a estabilidade econômica. A China não tem pretensões hegemônicas, militaristas, nada. A China só quer um ambiente propício para a própria construção econômica do país.


Folha
: Não são apenas empresários brasileiros que temem a China. A concorrência do país desperta receio em empresários de todo o mundo. Como a China vai lidar com isso?


Chen:
Para mim, é uma questão de falta de conhecimento. Entre a China e os Estados Unidos, as relações comerciais são ótimas. A China vende muito, mas compra muito também. Do superávit que a China tem [com os EUA], 85% é feito pelas multinacionais americanas.
A China fica com uma fatia muito pequena. A maior parte do lucro está no bolso das multinacionais americanas. Não há razão para ficar assustado. Os consumidores norte-americanos pouparam mais de US$ 600 bilhões nos últimos anos com as importações da China. Essa complementariedade é benéfica para os dois lados.

A China também enfrenta desafios, comprando produtos agrícolas e outros e isso nos obriga a reestruturar nossa indústria, recapacitar nossos agricultores. É um desafio, que você é obrigado a trabalhar.

Competição e concorrência, no seu sentido mais amplo, são muito saudáveis. No passado, os Estados Unidos tiveram medo da concorrência japonesa na produção de aço.
Agora, produzem muito aço e não temem mais a concorrência japonesa. Os americanos conseguiram virar a situação. O empresariado brasileiro também pode fazer o mesmo.

Fonte: Folha de S. Paulo