Para Thiago de Mello, Inácio Arruda é a esperança do povo cearense

Atualizada em 15/6

Numa breve permanência de cinco dias em Fortaleza, Thiago de Mello, um dos maiores poetas contemporâneos, provocou notável reboliço: deu aula, recitou, foi aplaudido de pé, homenageado pelo Fest

Por Luiz Carlos Antero

Esse heróico filho da Amazônia — que privou da intimidade de Pablo Neruda e Salvador Allende nos momentos mais difíceis para a liberdade na América Latina, e em breve abraçará seu dileto amigo Gabriel Garcia Márquez no aniversário de Fidel Castro, em Havana — demonstrou para o público e realizadores audiovisuais de todo o continente, de Cuba, Portugal e Espanha, que seus 80 anos de intensa trajetória guardam uma profunda relação com o vigor de seus poemas.

O poeta compareceu na qualidade de convidado ao 16º Cine Ceará, em sua primeira versão ibero-americana, com o objetivo de participar de um seminário sobre diversidade cultural ao lado de outras celebridades: o escritor e poeta Ariano Suassuna, e do também octogenário cineasta Fernando Birri, um dos fundadores da Escola de Cinema de Cuba — tema do festival no transcurso dos seus 20 anos de existência.

Quando soube que Ariano Suassuna iria falar para o público, Thiago fez questão de comparecer entre os ouvintes. Quando o viu na segunda fileira, atento como um admirador, Suassuna mencionou, sob intensos aplausos, sua presença, acentuando suas "dívidas" afetivas com o poeta e, ao final, ofereceu-lhe o "Romance d’A Pedra do Reino".

Histórias de luta

Em diversas ocasiões — inclusive numa emocionada conferência —, Thiago relembrou suas histórias de luta em momentos cruciais na ditadura do Estado Novo, no golpe militar de 1964 no Brasil e de 1973 no Chile — quando por pouco escapou ao fuzilamento —, em sua tortuosa trajetória política, na qual um dia transitava numa limusine como diplomata e noutro trafegava clandestino num ônibus qualquer. Inaugurou a palavra como (sua) arma ao escrever versos no estilo dos Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente), que completou 42 anos, hoje traduzido em mais de 30 línguas, em contraponto ao primeiro ato institucional do governo militar, dedicado ao povo brasileiro, às ligas camponesas, às lutas operárias e sindicais.

Thiago resume sua vida como uma "vida pronta para ser usada; uma vida que não se guarda nem se esquiva assustada. Vida sempre a serviço da vida". No final dos anos ‘70, em pleno regime militar, saiu do exílio antes da Anistia, foi preso no Brasil e, depois de libertado, mergulhou na floresta amazônica, passando a morar em Barreirinhas, de onde verseja até hoje para o mundo.

 Amazônico, latino, universal

Thiago discorre acerca de "uma enfermidade" que qualifica como "indignação moral" e que está na raiz de suas lutas nos últimos 25 anos em defesa da Amazônia Brasileira, o maior parque genético da terra, e da integração política da América Latina, que passa pela integração cultural. "Esses povos um dia falarão com uma só voz, no dia em que formos capazes de construir a grande união continental".

Sua perspectiva mais atual passa fundamentalmente pela conscientização das populações dos estados amazônicos e do povo brasileiro acerca de um patrimônio que não pertence ao império americano ou aos europeus, como pretendem. Aí o poeta oferece sua receita: é dever de cada artista brasileiro e latino-americano produzir uma arte em linguagem sempre mais acessível a um contingente cada vez maior dos que não tiveram acesso à universidade, pois nada é mais livre do que a criação artística.

Thiago escreve para o povo brasileiro e latino-americano, mas encontra seus poemas recitados na Índia e em todo o planeta porque as desigualdades sociais e a esperança são universais. E aprofunda sua opção num momento em que o apocalipse (a existência de quase dois bilhões de famintos no planeta) ainda vence a utopia. Essa opção pela utopia (realizável, acrescenta) o impulsiona a produzir mais intensamente e a reunir toda a sua literatura, desde o primeiro livro, de 1951, numa coletânea.

Ameaça ao firmamento

Num de seus livros inéditos, materializa uma conversa com um filho falecido — o compositor Manduca. Nele, quatro versos dizem: "Por isso somos quem somos/ estrelas num só momento/ mas cujo brilho ameaça a ordem do firmamento". São os quatro versos finais de uma música (de Manduca) que venceu o Festival Internacional da Canção em Nancy (França) e servem de epígrafe para o livro "Campo de Margaridas". Que conclui: "Nem sei para que mundo dos mundos tu partiste/ Levando teu canto/ Não sei".

Assim Thiago recria, em outra dimensão, a inspiração de um verso que constou de uma passeata que sucedeu o assassinato do estudante Édson Luís no Rio de Janeiro: "Faz escuro, mas eu canto". E reacende o momento em que, anos mais tarde, foi atirado numa cela do Quartel da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Abatido, examinou as dimensões da solitária: um quartinho apertado e muito alto. Da noite aos primeiros raios da manhã, viu riscos nas paredes e, depois, palavras: "Faz escuro, mas eu canto/ Porque a manhã vai chegar". Alguém que passou por ali usou seus versos para ganhar força e alimentou o poeta com a seiva de seus próprios versos.

Votos de vitória

Intensamente homenageado pela deputada Vanessa Grazziotin e parlamentares comunistas em Brasília, no mês de maio, Thiago de Mello alvoreceu junho em Fortaleza. Ao receber o troféu Eusélio Oliveira, a maior honraria do Festival, no palco do Cine São Luiz, do topo de seu engajamento resolveu se solidarizar publicamente com o líder da bancada do PCdoB na Câmara dos Deputados, Inácio Arruda — que trava uma dura batalha pela indicação ao Senado.

Dois dias depois, no mesmo cenário, brindou novamente o comunista com seus versos e uma placa uma placa que simboliza o reconhecimento do Cine Ceará pelas realizações de Inácio a favor da  cultura cearense. O fato ocorreu durante o encerramento do festival cearense, presenciado pelo ministro da Cultura Gilberto Gil, também homenageado na ocasião.

"Entrego este prêmio com a certeza de que estou entregando a esperança do povo cearense a um homem que já fez e vai fazer muito pela vida do nosso povo". Depois, Thiago dedicou versos a Inácio: "No começo, planta-se grão escuro e nasce um clarão/ Um dia vai ser dono do nosso chão/ Nunca vi verde tão verde como o do teu coração".
 
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*Inaugurado em 1958, o Cine São Luiz, com capacidade para 1500 pessoas, é um dos principais pontos culturais de Fortaleza. Construído na fase áurea do fervor público pelo cinema, o suntuoso prédio é revestido em mármore carrara e, entre outras peças decorativas, destaca um grande lustre de cristal oriundo da Tchecoslováquia. Há alguns anos abriga o Cine Ceará. Durante o festival, o acesso às suas dependências é gratuito.