José Carlos Ruy: As aptidões de Bolsonaro 

O presidente Jair Bolsonaro age, no cargo máximo da República, da maneira como agiu quando ocupou cargos legislativos ou na campanha eleitoral de 2018: como um desses valentões de boteco, que fala o que vem à cabeça, diz que faz e acontece, quase sempre contra os direitos dos demais. E revela, nessa atitude boquirrota, aquilo que é percebido como uma falta de preparo para a tarefa de governar o país, inclusive com desrespeito ao que se chama “a liturgia” do cargo.

Por José Carlos Ruy*

Bolsonaro

Mas engana-se quem suponha que se trata de mero despreparo ou de um fenômeno passageiro, que perderá apoio popular em ritmo inverso ao da construção de sua imagem de “mito” na campanha eleitoral de 2018. O que precisa ser entendido não é apenas o “fenômeno Bolsonaro” – o presidente e aqueles que o acompanham mais de perto. Sua qualificação pessoal para o cargo ao qual foi alçado é baixa – e ele o demonstrou e deixou visível neste quase um ano de mandato, desde 1º de janeiro de 2019. E é confirmado por frequentes manifestações de opiniões extravagantes, de extrema-direita e de admiração e submissão irrestritas ao imperialismo dos EUA e ao presidente Donald Trump.

Falar em “despreparo” do ex-capião não ajuda a entender o profundo enraizamento histórico e social do conservadorismo que ele representa e põe em ação. O que Bolsonaro põe em prática na Presidência da República faz parte do programa da direita, não confessado com clareza durante a campanha eleitoral, mas seguido com pertinácia para destruir o movimento popular e democrático, a Nação e o Estado brasileiros.

É um programa de extrema-direita radical, que sonha não com a volta aos tempos pré- 1930, da República Velha, mas pré-1889, da monarquia, quando as funções do Estado se resumiam ao aparato fiscal arrecadador, policial repressivo para manter a ordem social injusta, e tomador de empréstimos à oligarquia financeira, no mecanismo de endividamento público que transfere à oligarquia especuladora vastos recursos do tesouro nacional na forma de juros e demais pagamentos feitos pelo governo – mecanismo que ainda vigora e é descrito com minúcias no portal Auditoria Cidadã da Dívida. Estado – e governo – que, na opinião desta direita enraizada no passado mais remoto, não deve ter compromissos sociais ou democráticos.

É o sonho dos ultraliberais que, sob Bolsonaro, controlam o Estado brasileiro. Contra a democracia, os direitos humanos e os direitos sociais. Pela desastrosa e subserviente política externa submissa aos interesses do imperialismo, sobretudo dos EUA, que, frequentemente, traem o aliado dependente, como ocorreu com a recente notícia da sobretaxa de exportações brasileiras, anunciada por Donald Trump.

Conservadorismo extremo que transparece no sistemático desmonte do Estado brasileiro, com graves atentados contra a saúde e educação públicas, sobretudo ao ensino superior, no verdadeiro cerco à ciência e aos cientistas nacionais, na disposição reiteradamente manifestada de privatizar empresas estratégicas para o desenvolvimento do Brasil, seja no ataque contra entidades de defesa dos trabalhadores, como sindicatos e centrais sindicais, e a disposição de sufocá-los financeiramente, da mesma maneira como investe contra a União Nacional dos Estudantes, a UNE, procurando também destruí-la inviabilizando-a financeiramente. E na ausência de uma política econômica para superar o imenso, himalaico, desemprego, e no ataque à renda dos trabalhadores, com a continuação das maléficas políticas iniciadas sob o usurpador Michel Temer, que corroem a renda do trabalhador e o salário mínimo.

A lista de malefícios do governo de extrema-direita é extensa, e um simples exame do noticiário da imprensa a faz crescer diariamente – como, no início deste mês de dezembro, o assassinato, por policiais da PM do governador João Dória, de São Paulo, de nove rapazes que participavam de um baile funk em Paraisópolis, São Paulo. Não – não é apenas o “fenômeno Bolsonaro” que precisa ser entendido, por mais grave e atentatório contra a democracia que ele seja.

Bolsonaro e seu governo de extrema-direita são frutos diretos do golpe de Estado que depôs a presidenta eleita Dilma Rousseff em 2016. Não se pode dizer que tenha havido fraude no processo de votação que o escolheu – a fraude foi anterior. Foi o golpe que deu origem ao ilegítimo governo de Michel Temer. Foi a manipulação jurídica que aprisionou o ex-presidente Lula e o impediu de participar da eleição de 2018. Na campanha eleitoral, foi a fuga de Bolsonaro aos debates e confrontos eleitorais com os demais candidatos, nos quais teria de expor, com clareza suas ideias retrógradas e malsãs.

Antes dele, e mais grave, o que precisa ser entendido é a razão que levou 57,7 milhões de brasileiros (55,13% dos votos válidos) a indicaram para presidente da República um direitista tão radical como ele. O que Bolsonaro representa? E a quem? Estas são as perguntas que precisam ser feitas.

Apesar do avanço conseguido, principalmente desde 1930 – do ponto de vista social, tecnológico, econômico, político, e mesmo civilizacional –, o Brasil continua um país profundamente conservador. Conservadorismo que se manifesta em importante franja da sociedade, que está nela presente de alto a baixo. Começa pela classe dominante, formada por especuladores endinheirados do sistema financeiro, donos de terras, industriais, grandes comerciantes, alto funcionalismo público, etc., etc., etc.

Gente cujo pensamento e ação envolve desde a defesa intransigente da propriedade privada – daí seu forte viés anti-estatista, que vê “sinais de comunismo” em toda ação estatal, seja na existência de empresas estatais (sinônimo para eles de socialismo), seja na ação governamental que signifique limites à liberdade de ação do capital, seja na adoção de medidas de proteção social, sobretudo se ela significar distribuição de renda (por exemplo, programas como o Bolsa Família) e acesso à propriedade (como o programa Minha Casa Minha Vida ou o Programa de Agricultura Familiar – Pronaf), entre outros.

Mas esse pensamento e ação retrógrados envolvem também setores importantes das chamadas classes médias, como profissionais liberais, funcionários públicos (entre eles militares), empregados administrativos privados, intelectuais, pequenos comerciantes e empresários, entre outros, que, tradicionalmente, se veem espremidos entre os de cima – posições sociais que almejam – e os de baixo – proletários e assalariados – que temem duplamente: tem medo físico daqueles que já foram chamados de “classes perigosas” (formadas sobretudo por negros e mestiços pobres das periferias), e também o medo social de perder o que consideram suas “prerrogativas”, e serem empurrados a posições socialmente mais baixas.

Um exemplo desse temor de perder privilégios foi visto, em 2011, na forte reação de setores de classe média à regularização dos direitos dos empregados domésticos, no governo Dilma Rousseff. Esse medo está presente também nas reações contra a presença de “pobres” (principalmente negros, mestiços e nordestinos) em aeroportos, shopping centers e outros locais “de brancos”, reações que sinalizam claramente a hostilidade de classe contra a “invasão” de espaços de “gente de bem” – isto é, branca e de renda média e alta.

Esta distinção apareceu com vigor na discussão sobre as cotas raciais, que romperam o verdadeiro muro que reservava e protegia o espaço das universidades públicas para os mesmos privilegiados de pele mais clara. O renitente e permanente racismo brasileiro apareceu com força e, como dizia o historiador Clóvis Moura, como o verdadeiro limite da democracia brasileira. Limite que começou a ser rompido no período democrático da Constituição de 1988, principalmente nos governos de Lula e Dilma. Que, apesar de suas severas limitações, criaram uma situação existencial e ideológica insuportável para estes setores de classe média, que almejam aderir “aos que mandam”, mas convivem com os “de baixo” nos espaços geográficos e sociais que julgava seus e que veem “invadidos” por aqueles que, até então, estavam relegados aos piores lugares. Uma visão ameaçadora, de seu ponto de vista.

Mas há conservadorismo também entre as camadas mais pobres da população. Que se manifesta fortemente no fundamentalismo religioso e sua rasa concepção do certo e do errado, cujo racismo pode ser denotado, além da cor da pele, na ideia de que existem crenças religiosas malignas, “diabólicas”, sobretudo as de matriz africana, e que, assim, devem ser combatidas, em nome da fé verdadeira, da crença num Deus que sanciona e abençoa as diferenças.

O conservadorismo brasileiro anda – sempre andou – de mãos dadas com o racismo, que racializa a sociedade e opõe os setores que se consideram brancos aos “selvagens” e “animalescos” não brancos (pretos e mestiços em geral). Esses temores, que levam à defesa fanática da propriedade, do privilégio, da manutenção da ordem injusta e desigual que se reforçou desde o final da escravidão (em 1888), ajuda a entender o conservadorismo brasileiro e a manifestação recente do “antipetismo” (como já ocorreu com o “anticomunismo”, que dá sinais de reaparecer novamente) – estão com certeza na base do bolsonarismo, não só como fenômeno eleitoral, mas como o traço que distingue sua presença no cenário político.

É um senso comum dizer que, no cenário político brasileiro, a direita, a esquerda e o centro tem, cada um, um terço da opinião pública – mais ou menos 30% para cada uma destas opções. Vai se tornando também moeda corrente a opinião de que o bolsonarismo “de carteirinha” teria metade da terça parte da direita, ou seja, 15%. Se isso for verdade, é um número gigantesco de radicais de direita: seriam mais de 22 milhões de pessoas num universo que, em 2018, segundo o Tribunal Superior Eleitoral, teria 147 milhões de eleitores.

O que precisa ser entendido é por que, na eleição daquele ano, cerca de 35 milhões de eleitores – a soma estimada daqueles de “centro” e outros de uma direita “civilizada” – se juntaram aos 22 milhões da direita radicalizada para compor os mais de 57 milhões que deram a vitória a Bolsonaro. O conservadorismo brasileiro pode ajudar a entender esse resultado.

Tornou-se comum falar em fascismo, em referência a Bolsonaro. Numa polêmica a qualificação pode ser válida, mas ela não é rigorosamente correta. Bolsonaro representa o velho e renitente autoritarismo brasileiro, acima da lei, que trata o povo (negros, nordestinos, pobres, mestiços, moradores das periferias) a ferro e fogo, à bala, na base da repressão sanguinária quase sempre. A característica do brutal autoritarismo brasileiro, que herdou os métodos dos tempos da escravidão, e criminaliza a luta social – como sempre fez desde por exemplo a campanha abolicionista, acentuada nas décadas de 1870 e 1880.

O autoritarismo brasileiro, que sempre foi escravista, antecede ao fascismo europeu e mesmo aos governos tirânicos da direita (como aquele que reprimiu mortal e sanguinariamente a Comuna de Paris, em 1871) – e historicamente se dirige contra o povo, os pobres, contra aqueles de pele mais escura. Sempre prendeu, torturou e matou, sem nunca reconhecer os direitos do povo. O governo da direita está nesta linhagem repressiva e policialesca que sempre houve no Brasil, só contestada por curtos períodos democráticos, nos quais se inserem os governos Lula e Dilma.

Taxar o governo de Bolsonaro de despreparado é apenas parte – a mais visível – do problema. Que pode servir como biombo para disfarçar, e afastar de comentários públicos e das denúncias, as ações da outra parte deste governo, mais bem preparada e destinada a aplicar um programa antipopular, antipatriótico e antidemocrático: os economistas ultraliberais liderados por Paulo Guedes e seu programa de pilhagem dos recursos do Estado, de cortes de verbas que não se destinem a juros ou a remunerar o grande capital, de destruição do aparelho estatal, de liquidação pura e simples das empresas estatais estratégicas para o desenvolvimento.

Nesse sentido, o combate à direita neoliberal (ultraliberal) precisa unir, em uma ampla frente democrática, todas as forças avançadas e progressistas, independentemente de sua feição partidária e ideológica, todos os patriotas, todos aqueles que almejam o progresso social e civilizacional brasileiro.

* José Carlos Ruy é jornalista