Rádio pública do Recife se projeta investindo em cultura e diversidade

Na contramão desses tempos de ataque à cultura, à pluralidade de pensamento e à participação popular, a Rádio Frei Caneca FM, do Recife, se fortalece e confirma a importância da comunicação pública para a democracia. Três anos depois de ter saído do papel, a emissora – que tem fãs no país todo – acaba de lançar edital remunerado para apoiar a programação produzida pela sociedade civil. Também concorre ao Prêmio SIM, um dos mais relevantes da indústria da música brasileira.

equipe FCFM

O reconhecimento, que vem da audiência, aliás, já converteu-se em condecoração. A rádio recebeu, no dia 10 de novembro, o troféu Abebé de Prata Mãe Dadá, considerado o Oscar da Cultura Negra. Concedida por uma entidade dos terreiros de candomblé de Pernambuco, trata-se de uma condecoração para pessoas e organizações que contribuem para a transmissão, a divulgação e a valorização da cultura e da religiosidade de matriz africana, bem como no combate ao racismo.

As boas novas resumem alguns eixos norteadores da atuação da rádio – participação, compromisso de sua programação com valores da democracia e dos direitos humanos e o fortalecimento da cultura e da cidadania. Tudo isso sem deixar de ser atraente para os mais diversos públicos.

Em conversa com o Portal Vermelho, a cantora e compositora Pernambucana Isaar França destacou a papel da rádio como difusora da produção musical do Estado.

“É um espaço muito importante, porque coloca os artistas da cidade, que não têm vez nas rádios convencionais. A gente mora numa cidade que tem uma quantidade muito grande de novos artistas, com trabalhos interessantes, músicas populares, de vários estilos, gravações de qualidade. Onde escoar isso? Como conhecer essa produção? A população merece [ouvir]”, avaliou.

Ela destacou que, diante da boa produção musical que vem de todo o país, é ainda mais importante que a cidade conheça os seus artistas. “A Frei Caneca é fundamental nesse sentido, é essencial para essa vida cultural pulsante. Infelizmente, é a única rádio que dá esse espaço”, lamentou.

Incentivo à produção popular

O edital, aberto pela Prefeitura do Recife a proponentes de todo o Brasil, vai distribuir R$ 250 mil reais para estimular a produção, pela população, de conteúdos que ocuparão a grade da rádio pública. As inscrições seguem até 15 de janeiro e podem ser feitas no site da emissora (www.freicanecafm.org) ou pelos Correios.

A ideia do chamamento público é ocupar até 45 horas semanais da programação da emissora, com programas com 30 ou 60 minutos de duração, que deverão ser veiculados uma vez por semana, durante seis meses. Cada projeto selecionado receberá repasse máximo de R$ 25 mil. Para isso, é preciso que seja inédito. Iniciativas não-inéditas podem concorrer para ocupar a grade, mas não receberão recursos. A previsão é de estreia em abril do ano que vem.

“Esses aportes garantem que a sociedade civil tenha voz, tenha vez, ocupe seus espaços traga pautas importantes para o debate, como o combate ao racismo, à homofobia, a discussão sobre as questões de gênero. Essas reflexões, essa diversidade de sotaques empodera as pessoas. Esse é o papel da comunicação pública”, disse o diretor de programação da Frei Caneca, Patrick Tor4, no lançamento do edital.

O prefeito do Recife, Geraldo Júlio, afirmou que, apesar de ainda atrelada à estrutura do Executivo municipal, a emissora possui autonomia. “A rádio é pública, da sociedade, dos recifenses. A Prefeitura organizou, conseguiu as licenças, estruturou, faz a administração, mas a produção hoje já é quase 30% de programas feitos pela sociedade, antes, com recursos próprios. Agora, vão poder usar os recursos desse edital”, apontou.

Reconhecimento para além do Estado

Se a boa reputação da Frei Caneca fora de Pernambuco era algo que se percebia em conversas com alguns amigos “forasteiros”, a indicação ao Prêmio SIM 2019 veio para confirmar esta fama. A emissora – que pode ser ouvida on-line no site – concorre na categoria “Projeto do Ano”, que reúne dez iniciativas inspiradoras, responsáveis por “impactar o mercado da música no último ano”.

Ao lado da Frei Caneca FM estão, por exemplo, a Batekoo/Batekoo Records, o Blue Note São Paulo, o Escuta as Minas e o Festival Sarará. "Na categoria ‘Projeto do Ano’, tem muita gente incrível, mas comunicação pública de verdade e preocupada com a nossa música é algo que nos vai ser crucial nos próximos anos, e o trabalho que a Frei Caneca FM está fazendo é de tirar o chapéu", defende o empresário e produtor Ricardo Rodrigues, para quem a rádio pública do Recife é “um respiro de qualidade e profissionalismo no rádio brasileiro”.

O diretor musical Pena Schmidt – que já foi executivo e diretor de gravadoras como a Warner Music – lamenta que a Terra da Garoa, onde vive, não tenha a sua emissora pública nos mesmos moldes da recifense. “Frei Caneca é modelo de radiodifusão como serviço público. Queria muito que tivesse uma rádio assim em São Paulo. A Rádio Mário de Andrade", sugeriu.

Os vencedores do Prêmio SIM serão conhecidos no próximo dia 7, durante cerimônia no Centro Cultural São Paulo. Uma curiosidade, que revela um pouco sobre a programação antenada da Frei Caneca, é que os 10 artistas indicados na categoria “Novos Talentos” da mesma premiação já figuram na programação da 101.5 FM – alguns há mais de um ano.

Uma história que atravessa décadas

A rádio foi criada por uma lei municipal em 1960. O autor do projeto, o então vereador Liberado Costa Júnior, contudo, morreu em janeiro de 2016, com quase cem anos, sem ver a iniciativa acontecer. A saga para colocar a emissora no ar arrastou-se até junho daquele mesmo ano, quando o veículo começou a funcionar ainda em caráter experimental.

A princípio, quem sintonizasse a 101,5 ouvia apenas muita música e poucas vinhetas, o que lhe rendeu o apelido de pen drive. Mesmo assim, a programação colecionava admiradores – já era revolucionário escapar do conteúdo massificado e empoeirado que domina a maioria das rádios comerciais no país.

No ano passado, a Frei Caneca deu início a uma nova etapa, com a estreia de programação própria. Tratam-se de conteúdos produzidos pela equipe da rádio e também pela população, a partir de editais de ocupação da grade. Os dois primeiros editais foram lançados em 2017 e 2018, não previam remuneração, apenas a cessão do espaço.

Hoje, há espaço para música, informação, debate, entrevista. A rádio também faz algumas coberturas ao vivo, a exemplo do que tem acontecido durante o Carnaval. Este ano, a emissora cruzou fronteiras e foi até Nova Iorque, transmitir em tempo real os shows de Alceu Valença e Cordel do Fogo Encanto, direto do Central Park.

Patrick Tor4 celebra as conquistas da emissora, mas lembra que ela permanece em construção. “Temos avanços, é importante reconhecer, mas a gente ainda caminha no sentido de mais garantias, de a rádio ser cada vez mais a cara da cidade e de a sociedade estar cada vez mais presente nos processos de decisão. Acredito que devemos ampliar a participação popular, tanto na produção de conteúdo, como na gestão da emissora, com a construção de um Conselho”, defendeu, em conversa com o Vermelho.

De acordo com ele, hoje, um grupo de trabalho, com representantes da sociedade civil, reúne-se periodicamente para discutir questões que vão desde o perfil jurídico da rádio, até a criação de seu estatuto, que deverá versar, por exemplo, sobre a realização de concurso e a criação de conselhos paritários, que deem força de decisão à sociedade nas gestão da emissora.