Renata Mielli: A crueldade como ferramenta jornalística 

Homem se suicida pouco depois de ser humilhado por apresentador de televisão, que exibiu vídeo da tentativa frustrada de suicídio no dia anterior. Ao som da música “desça daí seu corno, desça daí, você ganhou foi galha não asas para voar”, o apresentador do programa policialesco do SBT de Londrina, Marcão do Povo, dedicou longos e repugnantes 6 minutos e 17 segundos para humilhar um homem que se pendurou num fio para tentar suicídio.

Por Renata Mielli*

Suicídio

Sem qualquer apuração, sem ética, sem responsabilidade e sem nenhum pudor, o apresentador afirma que o homem pendurado no fio era um “corno elétrico”. A “reportagem” é na verdade uma chuva de preconceito, machismo, ignorância e desrespeito.

Entre as frases vomitadas em tom jocoso por Marcão do Povo e pelo repórter Felipe Macedo estão “Você ganhou um par de chifres, não foi asas para voar”. “Você não é o único corno do Brasil”. “O cara é um corno elétrico”. “Se todo corno fosse subir em fio por levar chifre ia faltar fiação elétrica”. “A namorada estava marcando ‘tchuk tchuk’ com a vizinhança toda”. “A mulher estava soltinha, soltinha”.

Felipe Macedo entra ao vivo dizendo que o homem teria visto uma troca de mensagens no celular da mulher com “padeiro”, “uber”, “vizinhos”, e que então resolveu se matar. Mas, na hora de se pendurar, errou o fio. “Ele foi no fio de telefone. Não deu choque nenhum. Ele escorregou, se estatelou. Não quebrou nada, nem o chifre”, disse em meio a gargalhadas.

O programa foi ao ar por volta das 9 horas da manhã. O homem foi encontrado morto por volta das 11 horas. A esposa, que também foi humilhada na reportagem, disse a jornalistas que o marido sofria de depressão, estava desempregado e tinha perdido o benefício do INSS. Em sua defesa o advogado do apresentador disse que foi uma brincadeirinha e que não houve incitação ao suicídio.

Jornalistas e emissora devem ser processados

Mas o que eles chamam de brincadeirinha pode ser enquadrado nos tipos penais de crimes contra a honra – injúria, calúnia e difamação. Além disso, cometeram flagrante ilegalidade ao fazer isso numa concessão pública de televisão que, de acordo com a Constituição e com a legislação em vigor no Brasil, deveria ser usada prioritariamente para exibir programação de caráter educativo, cultural e jornalístico. O programa em questão não se enquadra em nenhum destes quesitos.

A não ser que resolvamos aceitar como natural e ético transformar o uso da crueldade como prática jornalística. A bem da verdade, uma parte da mídia já transforma o sofrimento das pessoas, os dramas, as dificuldades e doenças em espetáculo para produzir audiência. Mas o fazem à revelia da lei e da ética profissional.

Aliás, o Marcão do Povo já pode ser considerado um reincidente. Foi demitido da Record Brasília em janeiro de 2017, após ser acusado de racismo contra a cantora Ludmila durante o Balanço Geral DF. Em sua defesa, ele disse: “Eu usei uma expressão, ‘pé de macaco’, que na minha região é aquela pessoa que desdenha do próximo”, explicou. E atacou a cantora: Sobre Ludmilla, Marcão se disse ofendido. “Não devo favor nem satisfação para ela, ela que deveria pedir desculpa para mim”, disse. “Se você olhar no Código Penal ou no Google, vai ver que não cometi nada, nem injúria, nem calúnia. As pessoas se aproveitam da cor da sua pele para tirar proveito das pessoas, querem alguma coisa para sobressair em quem faz sucesso”.

Durante a cobertura da tragédia de Brumadinho, Marcão do Povo foi duramente criticado por fazer gracinha no meio das reportagens. O que não podemos, de jeito nenhum, é aceitar essas práticas de braços cruzados.

O que Marcão do Povo, Felipe Macedo e o SBT fizeram pode não ter sido o motivo inicial para que o homem tirasse a própria vida, mas certamente a humilhação e ridicularização vista na tevê, contribuiu para a segunda tentativa de suicídio que levou um homem à morte.

* Renata Mielli, jornalista, é coordenadora geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e e secretária geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.