Os rostos da multidão que foi receber Lula

Uma crônica sobre os trabalhadores em luta pelo retorno da Esquerda no Brasil e na América Latina.

Por Alessandra Monterastelli e Guilherme Arruda*

Povo com Lula - Foto: Alessandra Monterastelli

Eram 13:20. Além da multidão que já estava às portas do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, dezenas de pessoas vestidas de vermelho ainda subiam a rua que termina no grande prédio histórico para a luta dos trabalhadores.

O local ficou pequeno para tanta gente. Mas este é um detalhe: o ânimo era geral. Palco de importantes greves nos anos 1970, quando o país ainda vivia sob o regime militar, e berço do Partido dos Trabalhadores e da Central Única dos Trabalhadores, no último sábado, 9 de novembro, o Sindicato dos Metalúrgicos recebeu centenas de pessoas que aguardavam, eufóricas, o discurso de Luiz Inácio Lula da Silva. Líder histórico, Lula também é, de acordo com todos os presentes, o melhor presidente da história do Brasil. O ex-presidente ainda não sabia do golpe que aconteceria na Bolívia um dia depois, mas já pedia solidariedade a Evo Morales e ao povo boliviano.

A vigília de sua prisão e a festa de sua libertação nesse último sábado não foram as primeiras ocasiões em que o presidente ouviu o coro “Lula Livre!” ressoar pelo Sindicato dos Metalúrgicos. Em 1980, Lula passou um mês nas mãos do DOPS por ter sido considerado o principal líder das greves operárias no ABC em 1980.

Idosos, famílias com crianças, estudantes, trabalhadores de diferentes áreas: todos aguardavam as palavras de Lula, seja das janelas do Sindicato ou ao lado do caminhão de som. Aliviados com a liberdade, após 580 dias de prisão por um processo hoje comprovadamente injusto, uma prisão política contra aquele que, segundo as primeiras sondagens para o resultado das eleições de 2018, ganharia em primeiro turno.

Tinha empurra-empurra. "Eu quero ver o Lula!" uma mulher gritou atrás de nós, enquanto uma senhorinha respondeu: "nossa, gente, o pessoal não vai deixar o Lula nem chegar no microfone, parece quase que quer tirar pedaço dele". Algumas pessoas, antes e depois do discurso, passaram mal devido ao calor e pouco espaço. Foram socorridas por paramédicos. A multidão, nesses casos, abria caminho. Diziam para aqueles que passavam: "companheiro, olha pra cima e respira! Vai ficar tudo bem". Três jovens escalaram com agilidade e alguma ajuda de quem estava no chão a árvore em frente ao caminhão de som, para conseguir enxergar melhor.

"Meu amor pela liberdade, pela democracia e meu ódio pelo que estão fazendo com esse Brasil. Por esse fascismo que tá vindo ai". Esses foram os motivos que levaram Regiane, aposentada, até o Sindicato. A faixa vermelha "Lula Livre" destacava-se sobre os cabelos brancos da senhora, que vibrava a cada coro e que dançou todas as músicas que tocaram antes do discurso.

Pai e mãe seguravam, cada um por uma mão, o filho de sete anos, também com uma faixa “Lula Livre” na cabeça. O pai nos explica que a família estava ali para celebrar a liberdade do Lula, “mesmo que ela ainda possa ser provisória”. “Nós achamos que não foi um processo justo, mas que ele reflete um problema maior: como a gente lida com a democracia, como a gente não entende que há regras". Perguntamos o que esperam para a próxima eleição, em 2022. "Uma eleição justa", responde a mãe, sem hesitar. "E Lula na cabeça!", completa, seguida de uma risada do menino.

Jefferson, metalúrgico de 32 anos, tirava uma selfie de costas para a multidão. Quando questionamos o motivo dele estar ali, ele pareceu ter a resposta na ponta da língua. “A gente tá cansado, né? Cansado desse governo que infelizmente, na minha opinião, não foi eleito pelo povo. Foi imposto para nós. Nós estamos aqui pra apoiar nosso companheiro Lula, que sempre esteve ao lado do povo. Nós estamos aqui a favor do povo brasileiro”.

A indignação de Jefferson com o resultado da eleição de 2018, ganha por Jair Bolsonaro após a prisão de Lula e o escândalo de notícias falsas bancadas por caixa dois de empresários, foi o que motivou o metalúrgico a deixar a família em casa em um sábado. “Eu vim aqui para apoiar nosso presidente, o verdadeiro representante do povo brasileiro”.

Em seu discurso, Lula ressaltou a importância da união e apoio entre o Partido dos Trabalhadores e outros partidos de esquerda, como o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Para Jefferson e muitos outros manifestantes, essa não era somente uma questão importante, mas um alívio. A união e organização do campo progressista é a esperança do fortalecimento da oposição contra o governo Bolsonaro. “Eu acho essencial [a união entre os partidos de esquerda] até mesmo porque a elite se uniu contra o povo brasileiro. Então, nós que somos de esquerda, precisamos estar juntos também. O povo brasileiro precisa estar sempre em primeiro lugar”.

Nas entrelinhas do discurso do ex-presidente, lê-se um objetivo: a possibilidade de Lula se tornar um polo de união para a esquerda e facilitar a mobilização do povo nas ruas. Pediu para que os ali presentes, em especial a juventude, vá para a rua junto com Marcelo Freixo, Guilherme Boulos, Fernando Haddad, Gleisi Hoffmann, a Força Sindical, o Partido Comunista do Brasil e com a CUT. “Ou briga agora, ou o futuro será um pesadelo”, advertiu, para depois lembrar que a luta deve ser todos os dias: “eu quero que vocês saibam que esse jovem com tesão de 20, energia de 30 e experiência de 70 estará na rua junto com vocês!”, disse referindo-se a si mesmo, seguido de gritos agitados.

Lula relembrou que o prédio do Sindicato, que naquele momento exibia dezenas de pessoas de vermelho que ouviam atentas às suas palavras, fora construído quando ele estava na diretoria; naquele sindicato ele se formou politicamente; fez um curso de Ciências Políticas, um curso de Economia. “Aqui, a primeira vez que anunciaram meu nome e eu pensei que iam me dar o microfone eu comecei a tremer. Quando eu tomei posse em 1975, me chamaram pra falar e eu não conseguia segurar o papel que eu estava lendo de tanto que eu tremia”, lembrou e riu.

As palavras de Lula pareceram devolver a esperança e, especialmente, a vontade de persistir.

Jefferson parecia mais próximo de Lula após o ex-presidente lembrar que, na sua adolescência, já estava trabalhando para depois cursar uma preparação para ser metalúrgico. “Provamos que é possível colocar o pobre na universidade; provamos que é possível colocar o povo nas escolas técnicas; nós provamos que é possível melhorar as escolas; em 12 anos, nós geramos 22 milhões de empregos com carteira assinada” aqui, é interrompido por gritos eufóricos, “Os metalúrgicos sabem que no nosso mandato, criamos só na área metalúrgica mais de um milhão de empregos nesse país”. Jefferson sabia. "A história do ABC se resume à história das metalúrgicas. Com certeza, se ele [Lula] estivesse aqui a montadora Ford não teria ido embora. Porque infelizmente, querendo ou não, eles [atual governo] estão tirando a força do sindicato, impedindo o sindicato de estar na porta das fábricas. Com o nosso presidente de volta é uma nova esperança, do ABC voltar a ser o que era antes: uma cidade que sempre proporcionou emprego ao povo brasileiro. Infelizmente, hoje em dia, a gente só vê o desemprego aumentando", desabafou o jovem metalúrgico.

De fato, os dados do IBGE não mentem. “O povo tem menos saúde, tem menos casa, tem menos emprego. Mais de 50% da população está ganhando abaixo dos 413 reais” citou Lula, provocando agitação.

"Ó, minha querida, eu vou falar pra você. Desde os meus 15 anos de idade, minha família não tinha nada, lá no morro onde nois mora, no Jardim Limpão. Lá não tinha nada, a gente estava atrás de um terreno. E aí que chega o PT. Hoje em dia eu tenho uma casa, graças ao terreno que o PT me deu. E hoje estamos aqui com o Lula livre. Eu sempre estarei com o meu presidente. Eu só não tava na vigília porque eu estava trabalhando, mas pelo meu presidente eu faço de tudo. Eu já trabalhei com logística, tenho faculdade por causa do meu presidente! Hoje em dia sabe o que eu faço? Gastronomia, pelo Senac. Isso graças ao Luiz Marinho também, que me deu tudo. Hoje em dia, quando me perguntam se o PT me deu alguma coisa, eu falo: me deu a alegria e tudo. Eu agradeço tudo. Eu troquei minha folga do trabalho para estar aqui hoje”, conta Jefferson Luis, com uma cerveja na mão e muita alegria. Enquanto entrevistamos outros na rua em subida que dá de frente para o Sindicato, ele nos chamou: “ei, me entrevista!”. Depois de nos contar um pouco sobre sua história, concluiu: “Que Deus te abençoe”.

“Eu estou com mais coragem de lutar do que eu estava quando saí daqui. Lutar para tentar recuperar o orgulho da gente ser brasileiro, lutar para que as mulheres possam levar os seus filhos no supermercado e comprar o suficiente pra eles comerem, lutar para o trabalhador possa ter um emprego com carteira assinada e possa levar no final do mês um dinheiro para garantir a alimentação da sua família, lutar para que o trabalhador possa ir ao cinema, ao teatro, ter um carro, uma televisão, um computador, um celular, ir no restaurante e de poder todo final de semana reunir a família e fazer um puta de um churrasco, tomar uma puta de uma cervejinha gelada que é na verdade o que deixa a gente feliz”, disse Lula com entusiasmo, seguido dos gritos de alegria. As pessoas sabiam exatamente do que ele estava falando. Percebem o que lhes está sendo tirado.

Quando nos aproximamos de três senhorinhas vibrantes para perguntar o que as levou até aquela muvuca em um sábado, antes nos perguntaram, receosas, se éramos jornalistas da direita; provavelmente temiam que suas palavras fossem manipuladas ou que a gravação se tornasse alguma corrente de Whatsapp, quem sabe. Quando ganhamos sua confiança, uma delas gritou sua resposta: “Lula livre!! Pô cara, é muita felicidade hoje. Depois de tudo, é muita felicidade”.

A amiga da senhora mais entusiasta, a enfermeira Regiane, nos contou sobre como se sentiu após saber que Lula seria solto. “Eu fiquei estarrecida quando vi ele sair da cadeia. Era um preso político, o melhor presidente do país, saindo do cativeiro. Foi emocionante demais. Eu espero que o Lula volte, que a esquerda volte, com todos os nossos programas. A gente vê um desmonte no país, a gente vê a homofobia, o machismo, o governo contra os quilombolas, contra os índios… isso pra mim é a morte”. Perguntamos como ela lutou. Ela conta que presenciou muitas manifestações para que um governo de esquerda assumisse. Essa foi a realidade de muitos trabalhadores latino-americanos, quando os governos progressistas se fortaleceram no continente. Disse que não lembra da ditadura, mas que “os nossos” lutaram, e isso precisa ser louvado. Entretanto, faz uma autocrítica: “A gente elegeu o presidente [Lula] e relaxou. A gente não podia ter relaxado. Eu me senti como a Alice no país das maravilhas, e aí vendo esse desmonte eu penso que a gente não podia ter relaxado. A gente elegeu um governo de esquerda, e a extrema-direita se formou exatamente por isso. Por todas as nossas conquistas: pela luta LGBT, pela luta antirracista e pela luta do trabalhador. Eles não admitiram os direitos”.

Por último, ela completa: “como enfermeira, defendo o SUS até as últimas consequências”. “Se você levar o seu pai ou a sua mãe pro SUS com uma fratura de fêmur, o SUS vai operar; nenhum plano de saúde vai. Ninguém vai querer investir no seu pai e na sua mãe. É só o SUS que investe em pobre, em idoso”.

Moro, Dallagnol e Bolsonaro foram citados durante o discurso como aqueles que “não dormem como a consciência tranquila”. Os primeiros dois como mentirosos, acusação agora provada pelos vazamentos publicados no site The Intercept. O atual presidente, eleito graças a Moro e a intensa propagação de Fake News, aquele que, assim como apontou Lula, governa para os milicianos do Rio de Janeiro, assassinos de Marielle, chamada de nossa guerreira.

Paulo Guedes foi citado: “o ministro demolidor de sonhos, destruidor de empregos e da previdência”. José Roberto, conhecido como Camarão, estava presente no Sindicato vendendo bebidas e churrasco. Ele sabia do que o ex-presidente estava falando. “Eu apoio o PT porque milícia não é comigo não. Eu sou trabalhador. Quem me dá emprego com 61 anos? Ninguém. Quando eu vou aposentar? Então, minha sobrevivência é essa: trabalhar tranquilo. Se ele [Lula] tiver na rua ele vai deixar a gente trabalhar tranquilo”.

Os problemas do Brasil não estão descolados do continente e isso não passa despercebido por Lula. Se aqui Guedes é um chicago boy da escola dos causadores do que acontece no Chile, infelizmente agora depois do fim de semana sabemos que golpistas na Bolívia também se articulam com a direita latina. “Evo Morales é o companheiro que fez o melhor governo da Bolívia desde que a Bolívia foi criada; ela tá crescendo 5% ao ano. O Evo criou política social. Mas a direita, como fez aqui, não quer aceitar o resultado”. O ex-presidente cravou no sábado: é necessária a mais firme solidariedade com os outros moradores da Pátria Grande.

Logo após a fala apoteótica de Lula, militantes uniformizados conversavam encostados no portão de uma casa próxima ao sindicato. “O que trouxe nós da UP aqui hoje é a importância desse passo a mais na luta contra o fascismo”, disse Esteban Crescente. O carioca, servidor técnico-administrativo da UFRJ, é militante experiente e nos responde discutindo com clareza questões de tática e programa políticos – “precisamos contrapor o programa que está sendo colocado aí de jogar a crise nas costas dos trabalhadores, inclusive de uma maneira muito maior que nos últimos dois anos que a gente viu desde o golpe” –, e não se furta de discordar de Lula sobre o governo: “se a gente disser que é só as milícias, não é verdade. Mas eles estão lá, é um grupo de gente que venceu as eleições e eles estão nesse grupo”.

Muito depois do fim do ato, muitos dos que comparecem continuavam no sindicato. A presença estudantil se percebia mais fortemente. A juventude apareceu em solidariedade e em festa. “Eu acho que isso é que simboliza o dia de hoje, essa esperança de que as coisas podem melhorar, podem ir pra frente. A gente avançou um pequeno passo, a gente não está com a nossa vida resolvida, mas é um passo à frente para a democracia e para a justiça nesse país”, explicou Regina Brunet, gaúcha e 1ª vice-presidente da União Nacional dos Estudantes.

Outro diretor da UNE, Lucas Boin, em casa por ser nativo do ABC, saudou a disposição de unidade demonstrada por Lula. “Acho que apesar de, programaticamente, em muitos aspectos não existir acordo, o momento é de unidade. Seja na rua ou nas eleições, é unidade para barrar o Bolsonaro, pra barrar o Bolsonaro e o neoliberalismo. O fundamental nas eleições municipais é se unir onde for possível para que seja uma pessoa de esquerda, progressista, governando as cidades nos próximos anos.”

Que os bons augúrios realmente contaminem nosso futuro.

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