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Claudio Daniel: A poesia e os orixás

No livro Oriki Orixá, Antonio Risério, poeta e antropólogo baiano, escreve sobre a poesia cantada da tradição iorubá conhecida como oriki, dedicada a reis lendários, heróis mitológicos e deuses da natureza (orixás). Esse gênero, cantado até hoje nos terreiros de candomblé, inspirou poetas modernistas como Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Raul Bopp – que também dedicaram poemas aos orixás –, além de compositores como Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Por Claudio Daniel*

Orixás

Quem introduziu o oriki no Brasil foram os negros africanos, escravizados no período colonial-monárquico, que conservaram suas tradições religiosas, cantos e danças, sob o disfarce do sincretismo com o culto aos santos da devoção católica, assim como aconteceu em Cuba, com a santeria. O oriki – que significa, literalmente, “canto (ki) da cabeça (ori)” – é entoado durante o culto religioso, ou xirê, ao som dos atabaques e acompanhado de danças ritualísticas – cada orixá tem a sua própria dança e um toque especial de tambor.

A forma poética do oriki é bastante livre, pode ser breve ou extensa, não tem uma estrutura fixa, como o soneto ou o haicai, mas apresenta recursos poéticos como a aliteração, a assonância, a paronomásia, o refrão, o trocadilho, incorpora provérbios populares e epítetos – ou apelidos poéticos – dados aos orixás, reis ou heróis míticos, que são os personagens louvados nesse tipo de composição poética cantada no idioma iorubá, falado ainda hoje em algumas comunidades na Nigéria, Togo, Serra Leoa e Benim (o antigo Daomé).

Vamos ler uma das traduções poéticas de Antonio Risério, dedicada a Xangô, o orixá que rege o relâmpago e também a justiça:

XANGÔ

Xangô oluaxô fera faiscante olho de orobô
Bochecha de obi.
Fogo pela boca, dono de Kossô,
Orixá que assusta
Disputa com egum a posse de eku
Castiga quem não te respeita
Xangô da roupa rubra, dono da casa da riqueza.
Boca de fogo, felino na caça
Rompemuros rasgaparedes
Racha e crava pedras de raio.
Gritam teu nome na terra
Gritam teu nome na guerra.

(…)

Xangô, dono de Kossô, matador sem defesa
Kabiessi ô.
Não há lugar para todas as tuas roupas
Vida plena, aqui na minha tenda.
Enforcado não enforcado
Não nos bata com teu machado.
Que a vida, vida seja –
Dono de Kossô,
Me proteja.

Em outra cantiga, dedicada a Iansã (ou Oyá), orixá que rege os ventos e tempestades, também traduzida por Risério, lemos:

IANSÃ

Ê ê ê epa, Oiá ô
Grande mãe.
Iá ô.
Beleza preta
No ventre do vento.
Dona do vento que desgrenha as brenhas.
Dona do vento que despenteia os campos.
Dona de minha cabeça.
Amor de Xangô.

(…)

Aquela que luta nas alturas.
Que doma a dor da miséria.
Que doma a dor do vazio.
Que doma a dor da desonra.
Que doma a dor da tristeza.

As primeiras traduções desses textos orais para o idioma português foram feitas por Pierre Verger, na primeira metade do século 20. O escritor francês, também notável fotógrafo, etnólogo e iniciado como babalaô no Benim, estava interessado no sentido literal desses textos orais – em geral, pequenas narrativas que contam episódios da vida dos orixás, em linguagem coloquial, como as batalhas de que participaram, seus passatempos e suas conquistas amorosas, por vezes com referências eróticas explícitas.

Já Antonio Risério soube conciliar o conhecimento histórico e linguístico com a habilidade poética, fazendo de suas traduções belos poemas em língua portuguesa.

O oriki original, cantado em iorubá, sobrevive hoje no Brasil nas festas de candomblé e são diferentes dos pontos da umbanda, cantados em português, embora ambas as cantigas tenham o mesmo propósito de saudar os orixás e transmitir o seu axé, a sua energia ou poder, pela vibração sonora, assim como acontece nos mantras hindus e budistas, acompanhados pelo rosário, ou japamala.

O oriki despertou a atenção dos poetas modernistas brasileiros, sobretudo Raul Bopp, que publicou o livro Urucungo (1932); Jorge de Lima, autor de Poemas Negros (1947); Manuel Bandeira, que escreveu o poema D. Janaína; e Mário de Andrade, que faz referências aos cultos afro-brasileiros no romance-rapsódia Macunaíma (1928).

A partir da década de 1990 até os dias de hoje, diversos poetas brasileiros escreveram orikis: o próprio Risério, no livro Fetiche; Ricardo Aleixo e Edmilson de Almeida Pereira, em A Roda do Mundo; o autor do presente artigo, no Livro de Orikis (que será relançado em 2020, com o título de Marabô-Obatalá); e ainda Ricardo Corona, Fabiano Calixto, Frederico Barbosa, Delmo Montenegro, entre outros autores.

Na música popular brasileira, o oriki influenciou diversos letristas e compositores desde a Bossa Nova e a Tropicália: Baden Powell e Vinícius de Moraes gravaram o disco Afro-Sambas, em que se encontram, entre outras canções, o Canto de Ossanha, e o grupo tropicalista baiano, formado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa também cantou diversas canções inspiradas nos orixás, em especial no disco Os Doces Bárbaros. Na música popular brasileira recente, artistas como Mariene de Castro, Thalma de Freitas, Zeca Baleiro, Chico César, Mateus Aleluia (que integrou o conjunto musical Os Tincoãs) e a banda Memetto também gravaram canções dedicadas a Iansã, Ogum Iemanjá e outros orixás dos cultos afro-brasileiros.

A valorização da cultura afro-brasileira é muito importante nos tempos atuais, pós-golpe de Estado de 2016, seguido pela ascensão da extrema-direita, que multiplica os atos de racismo e de intolerância religiosa, como a depredação de templos de umbanda e candomblé, a perseguição aos seus praticantes nas comunidades – muitos pais e mães de santo foram expulsos de suas casas por milicianos ligados ao tráfico e a seitas neoevangélicas, sobretudo no Rio de Janeiro, mas também em outros estados do país. Todas essas ações violentas precisam ser denunciadas e combatidas. Somos um país plural, multiétnico, multirreligioso, e essa é a nossa maior riqueza.

Vamos ler agora poemas de quatro autores brasileiros inspirados nos orikis:

D. JANAÍNA
(Manuel Bandeira)

D. Janaína
Sereia do mar
D. Janaína
De maiô encarnado
D. Janaína
Vai se banhar.

D. Janaína
Princesa do mar
D. Janaína
Tem muitos amores
É o rei do Congo
É o rei de Aloanda
É o sultão-dos-matos
É S. Salavá!

Sarava sarava
D. Janaína
Rainha do mar

D. Janaína
Princesa do mar
Dai-me licença
Pra eu também brincar
No vosso reinado

REI É OXALÁ, RAINHA É IEMANJÁ
(Jorge de Lima)

Rei é Oxalá que nasceu sem se criar.
Rainha é Iemanjá que pariu Oxalá sem se manchar.
Grande santo é Ogum em seu cavalo encantado.
Eu cumba vos dou curau. Dai-me licença angana.
Porque a vós respeito,
e a vós peço vingança
contra os demais aleguás e capiangos brancos.
Agô!
que nos escravizam, que nos exploram,
a nós operários africanos,
servos do mundo,
servos dos outros servos.
Oxalá! Iemanjá! Ogum!
Há mais de dois mil anos o meu grito nasceu!

CANTO DE XANGÔ
(Vinícius de Moraes)

Eu vim de bem longe, eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim
Sou filho de rei muito lutei pra ser o que eu sou
Eu sou negro de cor mas tudo é só amor em mim
Tudo é só amor, para mim
Xangô Agodô
Hoje é tempo de amor
Hoje é tempo de dor, em mim
Xangô Agodô
Salve , Xangô, meu Rei Senhor
Salve meu Orixá
Tem sete cores sua cor
sete dias para a gente amar
Salve Xangô, meu Rei Senhor
Salve meu Orixá
Tem sete cores sua cor
sete dias para a gente amar
Mas amar é sofrer
Mas amar é morrer de dor
Xangô, meu Senhor, saravá!
Me faça sofrer
Ah me faça morrer
Mas me faça morrer de amar
Xangô, meu Senhor, saravá!
Xangô agodô

IANSÃ
(Gilberto Gil)

Senhora das nuvens de chumbo
Senhora do mundo
Dentro de mim
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Tempo bom, tempo ruim
Senhora das chuvas de junho
Senhora de tudo
Dentro de mim
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Tempo bom, tempo ruim
Eu sou um céu
Para as tuas tempestades
Um céu partido ao meio no meio da tarde
Eu sou um céu
Para as tuas tempestades
Deusa pagã dos relâmpagos
Das chuvas de todo ano
Dentro de mim
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Tempo bom, tempo ruim

* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.


BIBLIOGRAFIA

– KILEUY, Odé e OXAGUIÃ, Vera de. O candomblé bem explicado. Rio de Janeiro: Pallas, 2014.

– OLIVEIRA, Altair B. Cantando para os Orixás. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.

– PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

– RISÉRIO, Antonio. Oriki, Orixá. São Paulo: Perspectiva, 2013.

– SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1975.

– VERGER, Pierre. Os Orixás. Editora Corrupio Comércio, 1981.