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Como a literatura abolicionista ajudou a libertar escravos no Brasil

O romance abolicionista Fantina, publicado pela primeira vez em 1881, ganha este ano nova edição pela Chão Editora. Escrito por Francisco Coelho Duarte Badaró, esse e outros livros que vêm sendo redescobertos ajudam a compreender como a literatura foi um ponto importante na libertação dos escravos no Brasil.

Por Bruna Meneguetti

Maria Firmina

A história de Fantina concentra-se no drama da personagem que dá nome à obra, uma escrava obediente da viúva Dona Luzia. Fantina deseja casar-se com o também escravo Daniel – no entanto passa a ser perseguida por Frederico, novo marido de Luzia, até que este concretiza o estupro, engravidando-a.

Apesar da trama considerada simples para os dias atuais, na época da primeira publicação não era comum mostrar a realidade da violência contra escravos resultando em um fim tão trágico quanto o de Fantina: largada doente por Frederico, ela fica louca e é encontrada ao lado da filha graças ao esvoaçar dos corvos, já com o “cadáver em dessoração e todo roído dos vermes”.

Pensando sobre os motivos que levaram o autor a retratar essa realidade de violência sexual, chegamos ao cerne da literatura abolicionista do século 19 – ou seja, o esforço dos escritores da época por convencer seu público leitor sobre a importância do fim da escravidão. “Uma das maneiras de levar adiante a causa abolicionista era enfatizar o que havia de abuso sexual e violência contra as mães e mulheres escravas. É interessante pegar um romance como o de Badaró e entender como a luta pela abolição envolveu uma denúncia”, explica, em entrevista ao Aliás, Sidney Chalhoub, que assina o posfácio da nova edição de Fantina e é professor dos Departamentos de História e de Estudos Africanos e Afro-americanos na Harvard University.

Dessa forma, há registros de diversos autores da época que continham a prerrogativa da maternidade em suas obras. Em 1860, ocorreu a primeira encenação da peça Mãe, escrita por José de Alencar, em que um homem decide vender a escrava que cuidou dele desde o nascimento. Porém, apenas após realizar o ato, descobre que a criada era sua mãe.

Já na literatura de Castro Alves (1847-1871) há diversos poemas falando das mães temerosas de seus filhos serem levados para longe, algo que se tornou muito comum após o fim do tráfico negreiro, quando significativas quantidades de escravos eram vendidos do norte para o sul do país, para as fazendas cafeeiras. “Essa questão da separação de famílias é um tema abolicionista central”, explica Chalhoub.

Outra faceta que Fantina desperta é a questão sobre o embranquecimento das personagens escravas – algo que se pode notar no trecho em que Daniel recebe o seguinte conselho: “que furtasse a rapariga e fosse para bem longe; que ela era clara, bonita e bem-educada, por isso ninguém a tomaria por escrava fugida”. Porém, tal fala não era novidade, ainda mais tendo em vista o fato de o escritor ser admirador de Bernardo Guimarães, que escreveu uma apresentação de seu livro e foi autor de A Escrava Isaura (1875), cuja personagem era retratada como branca.

Até no primeiro romance abolicionista da língua portuguesa, Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, primeira escritora negra do Brasil, o drama gira em torno de uma personagem branca. Segundo Oswaldo de Camargo – escritor, jornalista e estudioso da literatura negra –, o negro como protagonista vai aparecer pela primeira vez em Trajano Galvão de Carvalho (1830-1864), precursor da poesia abolicionista e social do escravo africano.

“Nasci livre, fizeram-me escravo; / Fui escravo, mas livre me fiz. / Negro, sim; mas o pulso do bravo / Não se amolda ás algemas servis!”, lê-se nos versos do poema O Calhambola (1854). "Mas não é um negro por dentro, é um negro por fora que ele vê", explica Oswaldo, pois Trajano era um escritor branco.

Apesar de comum, o embranquecimento das narrativas abolicionistas pode ser explicado por uma tentativa dos escritores da época de angariar o apoio do público leitor para sua causa. “Há uma tendência de fazer com que as escravas se pareçam com as mulheres desses leitores ou com as próprias leitoras para que haja um vínculo sentimental maior com pessoas importantes para formar opinião contrária à escravidão”, informa Chalhoub.

Algo parecido pode ser notado em As Vítimas-Algozes (1869), obra do escritor Joaquim Manuel de Macedo, em que ele retrata negros extremamente agressivos com os donos das terras. “O objetivo é deixar os senhores aterrorizados para convencê-los de que a abolição era a melhor coisa que poderia acontecer para o próprio interesse deles. Então é paradoxal que às vezes o discurso abolicionista corteja muito o racismo”, elucida o professor.

Outra escritora abolicionista que está sendo relançada este ano é Emília Freitas. Seu livro A Rainha do Ignoto, publicado pela Editora 106, é considerado por muitos pesquisadores como o primeiro romance fantástico brasileiro. Apesar de ter sido lançado em 1899, a história se passa durante a escravidão – indicando que talvez tenha sido escrito anteriormente – e foca na jornada de Doutor Edmundo para conhecer os segredos de uma mulher que a região de Passagem das Pedras, antigo distrito da cidade de Jaguaruna (CE), apelida de Funesta.

Encantado pela figura, Edmundo descobre que ela seria a rainha da Ilha do Nevoeiro e consegue entrar em seu reino disfarçado de mulher. Lá, ele convive com figuras femininas em posições de prestígio e é testemunha das atividades delas como justiceiras, inclusive libertando os escravos.

“Essa literatura imagina uma sociedade de mulheres médicas, engenheiras, arquitetas, chefes do exército, todos os cargos impensáveis na época. Era uma sociedade utópica de mulheres que faziam de tudo, e isso eu vejo como um feminismo possível para a época”, explica Constância Lima Duarte, que assina a apresentação do livro e é professora de literatura da UFMG.

Para ela, são pensamentos libertários como esse que terão impacto na maneira como o público feminino observava a escravidão. “As mulheres brancas da elite tomaram consciência da sua condição de oprimidas vendo a opressão dos escravos”, afirma, “então toda feminista era abolicionista ou toda abolicionista era feminista. Faz parte, porque se você tem um pensamento libertário num aspecto, provavelmente vai enxergar a outra opressão”.

Isso é justamente o que parece ocorrer com Emília Freitas e também Nísia Floresta, autora abolicionista e uma das precursoras do feminismo no Brasil, cuja biografia #NísiaFlorestaPresente: Uma Brasileira Ilustre, escrita por Constância, será distribuída gratuitamente de modo online ainda este ano. A produção de Nísia é vasta: há romances, crônicas, poemas, ensaios e livros de viagem. “Em toda a sua obra ela trata da questão da escravatura. Em 1840 e 1850, é um olhar tímido de denúncia, mas aumenta à medida que Nísia vai morar na Europa e se identifica com o movimento abolicionista que havia na Inglaterra e na França”, informa a professora.

O curioso dos autores e autoras citados até agora é que eles não se restringiam apenas à publicação de livros para formar sua resistência. Castro Alves fundou uma sociedade abolicionista, enquanto Emília Freitas foi uma das integrantes da Sociedade das Cearenses Libertadoras. Inaugurada em 1883, a Sociedade tinha 22 mulheres na direção e outras 66 apoiadoras que ajudavam na campanha pela abolição no Ceará.

Além disso, Emília colaborou em jornais como o Libertador (1881), que também transcreveu trechos de discursos dela. Outra escritora recém-lançada e que fazia uso dos periódicos, como o Jornal do Commercio, A Semana e Tribuna Liberal, para expor suas ideias abolicionistas e republicanas é Júlia Lopes de Almeida. A autora tem livros como A Falência e A Família Medeiros, este último possui o enredo pautado no período final da escravidão.

Para auxiliar suas lutas, os escritores também montaram seus próprios periódicos. Castro Alves fundou em 1866, com Rui Barbosa e outros alunos de direito, o jornal A Luz. Além disso, segundo Constância, existiram alguns jornais abolicionistas criados por mulheres em Recife, Manaus e Fortaleza. “Suas fundadoras eram jornalistas e também escritoras, mas hoje não são conhecidas”. Entre elas está Leonor Porto, de Recife, uma das criadoras do periódico Ave Libertas (1885). Mesmo sendo de baixa tiragem, a professora destaca que essas publicações podem ter tido um alcance muito maior do que imaginamos.

O Ave Libertas, por exemplo, fazia rifas para comprar escravizados e depois libertá-los. “Mandavam todos para o Ceará, que lá não tinha mais escravidão”, afirma Constância. Além disso, era comum a troca de jornais entre as mulheres. “Em minhas pesquisas, por exemplo, eu encontrava um poema que tinha sido publicado no jornal O Lírio, de Recife. Depois de um, dois meses, encontrava o mesmo poema em um jornal do Rio de Janeiro, Salvador, Minas. Guardados os devidos problemas da época, é como se tivesse uma rede de sonoridade, de apoio mútuo entre elas”.

Os jornais, portanto, foram fundamentais para os autores abolicionistas da época. “A imprensa era o lugar em que a política e a literatura se encontravam. Praticamente todos os literatos brasileiros do século 19 eram jornalistas e viviam de escrever para jornais”, explica Chalhoub. No caso de publicações grandes, a tiragem, para padrões atuais, era impressionante. A Gazeta de Notícias (RJ), onde Machado de Assis escrevia e José do Patrocínio iniciou uma campanha pela abolição em 1879, "atingia perto de 10% da população da cidade, com 20 mil exemplares diários".

Abordar a temática da abolição para essa quantidade de leitores tinha impacto. “Faz as pessoas pensarem a problemática da escravidão, além de sensibilizá-las para seus horrores e para a necessidade de acabar com ela em nome de uma civilidade”, afirma Chalhoub. Além do mais, os leitores de jornais costumavam ser um público elitizado. “Eles tinham poder de influenciar políticas públicas em relação à escravidão, conheciam representantes no parlamento.”

Isso quando esses mesmos escritores não atuavam diretamente na política e garantia das leis. José do Patrocínio, por exemplo, foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e vereador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Além disso, era filho de uma escrava alforriada e ajudou a criar a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão (1880), no Rio de Janeiro. Na carreira literária, escreveu três romances e, não à toa, recebeu o epíteto de O Tigre da Abolição. Já José de Alencar foi chefe da Secretaria do Ministério da Justiça e deputado provincial no Ceará.

Os advogados também não ficam para trás. O autor de Fantina era um estudante de Direito na época em que escreveu o livro. Já o poeta Luiz Gama, vendido pelo próprio pai como escravo, se tornou escritor e advogado após provar que tinha nascido livre. Seu único livro de poemas é Primeiras Trovas Burlescas de Getulino (1859). Segundo ele próprio, conseguiu libertar judicialmente mais de 500 pessoas escravizadas. Para isso, se amparava na Lei de 7 de novembro de 1831, que declarava livres todos os africanos trazidos ao Brasil após aquela data.

“Diante da dificuldade de os senhores provarem a entrada de seus escravos no País, o escritor reivindicava a liberdade deles em juízo”, afirma Cristina Emy Yokaichiya em seu artigo Nas Entrelinhas dos Relatos Históricos: Reflexos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco no Processo pela Libertação dos Escravos em São Paulo. Já Tobias Barreto, um dos principais nomes do condoreirismo, mestiço e estudante de direito, teve de fugir do município de Escada, em Pernambuco, após libertar os escravos que herdara de seu sogro.

O curioso é que. mesmo nos casos dos escritores mais famosos, poucos são os textos de caráter abolicionista ou de defesa do escravo que se tornaram conhecidos e que chegam até os leitores atuais. Pouca gente sabe, por exemplo, que Machado de Assis publicou textos através de um personagem-narrador chamado Lélio. Por meio dele, Machado tematizou a escravidão e falou das lutas jurídicas ao redor da Lei dos Sexagenários, que gerou decepção entre os abolicionistas por estes desejarem mais avanços, segundo o livro As Máscaras de Lélio – Política e Humor nas Crônicas de Machado de Assis (1883-1886), de Ana Flávia Cernic Ramos.

“Os romances que abordavam a escravidão raramente viraram canônicos. Era um tema incômodo”, afirma Chalhoub. No caso de escritoras mulheres e negros, para Constância, as obras abolicionistas foram vítimas do “memoricídio”, ou seja, o assassinato da memória. Isso ocorreu pelo fato de que, na época, os homens dominavam todos os espaços de poder e determinavam quem iria ser divulgado ou mesmo publicado, tornando difícil que as mulheres fossem reconhecidas.

“No caso de Emília Freitas, acho que são irônicos os textos introdutórios dela, pois em Canções do Lar ela começa pedindo desculpas por se atrever a publicar um livro — porque as mulheres tinham consciência de que estavam adentrando num espaço proibido —, mas se dirige aos leitores como censores”.

Algo parecido ocorre com os autores negros. “Enquanto esses literatos emprestavam seu talento ao espaço público para ir contra uma instituição condenada, que era a escravidão, havia mais espaço e tolerância ao trabalho deles. Décadas posteriores, em que a questão é o racismo que se institucionaliza, o espaço desses intelectuais se restringe e deixa de ter no debate público brasileiro uma presença marcante”, explica Chalhoub.

Nesse sentido, livros como Fantina, A Rainha do Ignoto e a biografia de Nísia Floresta surgem como um breve respiro no reparo que a história literária deve a alguns de seus autores.