Religiosos e conservadores dominam agenda “oficial” de Damares

Autointitulada como “terrivelmente cristã”, a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) se reuniu com dezenas de lideranças religiosas e conservadoras nos dez primeiros meses do governo Jair Bolsonaro, incluindo defensores da “cura gay” e movimentos contra a legalização do aborto. A agenda ideológica abrange até um encontro com representantes da União Conservadora Americana, responsável por organizar, nos EUA, a Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC).

Damares

Dados disponíveis publicamente estão incompletos, na contramão da previsão legal de promoção da transparência. Por isso, o HuffPost Brasil pesquisou compromissos da ministra com base no site do ministério e também obtidas via Lei de Acesso à Informação (LAI). Antes do convite para integrar o governo, Damares era assessora, desde 2015, do então senador Magno Malta (PR-ES), um dos maiores apoiadores de Bolsonaro, que negou ser responsável pela indicação dela.

Em outubro, a ministra e pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular foi uma das participantes da primeira versão brasileira da CPAC. Ela iniciou seu discurso, um dos mais aplaudidos, com esta frase: “Estou aqui há 24 horas e ninguém me ofereceu ainda um cigarro de maconha e nenhuma menina introduziu um crucifixo na vagina”.

Meses antes, em 19 de julho, Damares encontrou integrantes da União Conservadora Americana em Washington (EUA). Na mesma viagem, ela se reuniu, dois dias antes, com integrantes da Heritage Foundation, um think tank conservador norte-americano com sede na capital americana. Em 10 de outubro, a pastora recebeu James Roberts, diretor do índice global de liberdade econômica da fundação, dessa vez no Brasil.

Foi também nessa estadia nos Estados Unidos que a ministra participou de reunião, em 15 de julho, na South Florida Bible College, em Miami. O local reúne cursos de carreiras religiosas, como “estudos bíblicos”, “aconselhamento cristão”, “aconselhamento pastoral”, “divindade” e teologia.

A agenda internacional também inclui uma audiência com parlamentares do partido argentino Celeste Provida, em 30 de maio, em Buenos Aires. A legenda se considera a primeira no país cujo objetivo principal é “impulsionar a promoção da defesa da vida humana desde a concepção” e a única que “não permite a seus integrantes se omitir diante de proposta que possam atentar contra a vida”.

Azul celeste era a cor usada pelos manifestantes contrários ao aborto legal na Argentina, em oposição aos lenços verdes, pró-legalização. Em 2018, o Senado argentino votou contra proposta que permitia a interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação, mas a campanha pelos direitos reprodutivos continua a pressionar parlamentares neste ano por meio de protestos.

Na visita ao país vizinho, Damares mostrou alinhamento com o partido Celeste. “Este governo defende a vida desde a concepção”, disse no encontro que teve como objetivo firmar parcerias entre os dois países contra a legalização do aborto. “Nós, pró-vida, acreditamos que, no continente, precisamos de estar mais juntos porque entendemos que o aborto não é solução para nenhum problema. Como pró-vida, podemos apresentar sugestões de políticas públicas de planejamento familiar”, completou.

Já em setembro, a ministra brasileira se reuniu, em Budapeste (Hungria), com integrantes de governos de extrema direita, incluindo a ministra da Família, Trabalho e Política Social da Polônia, Bożena Borys-Szop, e a secretária da Família e Assuntos da Juventude da Hungria, Katalin Novák. Na chamada “Cúpula da Demografia”, Damares anunciou que o Brasil “voltou a ser um país da família” e convocou líderes internacionais a formar uma aliança na ONU (Organização das Nações Unidas) por esses valores.

Integrantes de governos do Leste Europeu indicaram que iriam coordenar essa agenda, de acordo com reportagem do UOL. Na ocasião, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, afirmou que “toda criança tem o direito de ter um pai e uma mãe” e chegou a defender uma mudança na Constituição húngara para “proteger as famílias” e impedir que cortes judiciais tomem decisões “antifamília”.

Lideranças religiosas

Em Brasília, constam na agenda oficial da ex-pastora ao menos 20 compromissos com religiosos de janeiro a outubro, incluindo acompanhar o presidente Jair Bolsonaro em culto em 10 de julho. Fora da agenda, a ministra também acompanhou o ex-deputado em ida ao cinema em 26 de março, para assistir ao filme Superação, O Milagre da Fé.

Entre os eventos cujas informações não estão detalhadas, está o “encontro com líderes religiosos do Brasil”, em 3 de abril. De acordo com dados obtidos por meio da LAI, a ministra fez uma breve fala “sobre os direitos humanos no Brasil” no Encontro Intercessão pela Nação. Damares também “recebeu oração dos líderes religiosos” na ocasião, em que estavam presentes outros integrantes do primeiro escalão do governo, como Onyx Lorenzoni (Casa Civil) e André Mendonça (Advocacia-Geral da União), ambos evangélicos.

Já em 8 de abril, a ministra se reuniu com Antônio Carlos, fundador da Comunidade Jesus Menino. Segundo informações obtidas via LAI, na ocasião, foi discutida a possibilidade de se realizar um convênio entre a referida comunidade católica, que acolhe crianças com necessidades especiais, e a Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, parte do Ministério de Direitos Humanos. No dia 18 do mesmo mês, Damares participou de reunião sobre atividades da Igreja Videira do Brasil.

Já em 18 de junho, o bispo Edir Macedo, proprietário do Grupo Record, era um dos 12 participantes de uma reunião com lideranças religiosas em que Damares debateu com eles “acerca de obras sociais e interiorização de imigrantes venezuelanos no Brasil”, segundo informações obtidas via LAI. Em 6 de setembro, o bispo foi recebido pelo presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada. Cinco dias antes, Edir Macedo abençoou o ex-deputado, de formação católica, diante de quase 10 mil fiéis no Templo de Salomão, sede da Igreja Universal do Reino de Deus em São Paulo.

As reuniões da ministra de Direitos Humanos também incluem parlamentares da bancada evangélica, por vezes, acompanhados de lideranças religiosas. Foi o caso da reunião com o senador Luiz Carlos do Carmo (MDB-GO), em 14 de maio, junto ao irmão do parlamentar, Eurípedes do Carmo, presidente da Assembleia de Deus em Goiás. Conforme a agenda da ministra, o tema foi um convite para o Seminário da Família da Assembleia de Deus de Goiás. Segundo a assessoria de imprensa do senador, o seminário tratava de violência doméstica contra mulheres.

O presidente da Frente Parlamentar Evangélica, nome oficial da “bancada da Bíblia”, deputado Silas Câmara (Republicanos-AM), foi recebido ao menos três vezes no ministério neste ano, segundo a agenda oficial. De acordo com ele, o diálogo com a ex-pastora é constante – e a expectativa é de que em 2020 haja um avanço de “matérias de direitos humanos, família, vida, idosos, crianças e adolescentes”.

Questionado sobre restrições ao aborto legal – hoje permitido em casos de estupro, risco de vida da mulher e feto anencéfalo –, Câmara acredita que haverá um “aperfeiçoamento da lei natural do comportamento de direita e conservador que tem no governo”, mas não detalhou que tipo de medida pode vir.

De acordo com o deputado, há uma intenção de avançar com a criminalização da lgbtfobia ainda em 2019. “Temos um acordo com o [presidente da Câmara], Rodrigo Maia, de neste ano ainda reunir todas proposições e fazer um substitutivo que acomode todos interesses nessa matéria”, afirmou ao HuffPost. Ainda não há consenso sobre como será o texto. “Um acordo hoje sobre homofobia passa por pelo menos 30 proposições diferentes, inclusive de oposição”, completou Câmara.

A equiparação da lgbtfobia ao crime de racismo, decidida pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em junho, provocou reação de setores conservadores no Congresso. Deputados como Marco Feliciano (Podemos-SP) e Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) defendem que a punição para esse tipo de discriminação seja por meio de um agravante nos casos de homicídio e lesão corporal, o que excluiria situações de injúria (ofensa), por exemplo.

Cura gay e agenda pró-vida

Além da ala religiosa, Damares se dedicou a organizações conservadoras. Em 26 de abril, recebeu Adriano Vieira, presidente do Movimento Endireita Fortaleza. O grupo se define como suprapartidário e defensor da “conservação e a permanência de valores familiares, cristãos e da reconstrução cultural”, além de listar como referências Jair Bolsonaro, o ministro da Justiça, Sergio Moro e o escritor Olavo de Carvalho.

Em 5 de agosto, foi a vez de representantes do então recém-criado Movimento dos Ex-Gays do Brasil, incluindo sua fundadora, a pastora da igreja Manancial Palavra Viva, Miriam Fróes. Em entrevistas à imprensa, à época, Fróes disse que foi procurar no ministério um reconhecimento do grupo e que havia um receio de que suas atividades pudessem ser enquadradas na decisão do STF de criminalizar a lgbtfobia. O tribunal, contudo, excluiu manifestações religiosas desse tipo de punição.

Na mesma reunião também estava a psicóloga Rozangela Alves, defensora da terapia de reversão sexual, popularmente conhecida como “cura gay”. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) proíbe esse tipo de prática desde 1999. Nove anos antes, em 1990, a OMS (Organização Mundial de Saúde) deixou de classificar a homossexualidade como patologia e a retirou da Classificação Internacional de Doenças. Na ocasião, o ministério negou que esse assunto tenha sido discutido no encontro.

Já a agenda pró-vida de Damares inclui compromissos fora de Brasília. Em 2 de maio, ela participou da abertura do Congresso Internacional em Defesa à Vida e Família, em Aracaju (SE), evento que contou também com a presença da secretária da Família, Angela Gandra, já conhecida em eventos promovidos, no Congresso, por parlamentares contrários à legalização do aborto, antes de assumir o cargo no Executivo.

Um dos temas discutidos em Aracaju foi uma ação em tramitação no STF que pede a descriminalização do aborto no caso de mães infectadas pelo Zika vírus. O caso seria julgado pelo plenário da corte naquele mês, mas foi retirado de pauta pelo presidente, ministro Dias Toffoli. No mesmo mês, em 6 de maio, a ex-pastora participou de sessão solene em comemoração aos 12 anos do Comitê Goiano em Defesa da Vida, em Goiânia (GO).

Também em maio, a ministra falou contra a interrupção da gravidez em casos de mães infectadas pelo Zika, em evento da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família na Câmara dos Deputados. “Estamos vivendo uma nova nação, um novo momento. Deus está levantando um exército no Brasil”, disse. A ex-pastora afirmou que essa posição do governo brasileiro foi apresentada à ONU.

Além das questões ligadas a direitos reprodutivos, fazem parte da nova posição brasileira em fóruns internos e internacionais o veto à palavra “gênero” e o destaque à promoção da família. Diplomatas receberam instruções oficiais do comando do Itamaraty para reiterar o entendimento do governo brasileiro de que a palavra gênero significa o sexo biológico: feminino ou masculino. A decisão vai ao encontro do posicionamento de Bolsonaro e do chanceler Ernesto Araújo sobre questões relacionadas ao que chamam “ideologia de gênero”.

O termo foi cunhado por católicos e não é reconhecido no universo acadêmico. É usado por grupos conservadores que se opõem às discussões sobre diversidade sexual e de identidade de gênero. Já a teoria de gênero, reconhecida pela academia, aponta que gênero e orientação sexual são construções sociais e, por isso, não podem ser determinadas por fatores biológicos.

As instruções dadas ao Itamaraty levaram a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexo) a denunciar o governo ao STF – mas não houve resposta. Na ação, a ABGLT argumenta que a ordem ao Itamaraty é inconstitucional e viola direitos já reconhecidos pela corte. Um dos julgamentos citados pelos advogados da organização é o da ação direta de inconstitucionalidade 4275/DF.

Em março de 2018, o Supremo decidiu que, para alterar nome e gênero de registro em documentos, não é necessário autorização judicial, laudo médico ou mudança de sexo. Na decisão, a maioria dos ministros invocou o princípio da dignidade humana para assegurar o direito à adequação das informações de identificação civil à identidade autopercebida pelas pessoas trans, valorizando a definição de gênero como uma construção social.