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Celso Marconi: A Vida Invisível – o filme e o romance

A Vida Invisível é o sétimo filme realizado pelo cineasta cearense Karim Aïnouz. Mas certamente é o mais conhecido pelo fato de ter recebido o melhor prêmio na mostra Un Certain Régard no Festival de Cannes, de ter a presença festiva de Fernanda Montenegro e de ser o escolhido para representar o Brasil no Oscar de Melhor filme estrangeiro, entre outros pontos.

Por Celso Marconi*

A Vida Invisível

Ouvi num comentário de um blog que A Vida Invisível tem bastante chances de chegar a ser um dos concorrentes ao Oscar, porque ele foi ‘adotado’ pela Amazon – e esta tem um grande (não sei o nome em inglês para dizer) estofo para trabalhos desse tipo.

Assisti ao A Vida Invisível num cinema de arte da avenida Rosa e Silva, no Recife, e confesso que perdi muito dos diálogos. Foi uma visão incompleta. Então, para compensar, li o livro de Martha Batalha, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. Fiquei meio tonto, sem saber o que fazer. Isso porque, do ponto de vista da construção estética, são dois produtos quase inteiramente diferentes. E eu naturalmente me liguei muito mais ao livro.

Gosto muito do cinema de Karim Aïnouz, particularmente de O Céu de Suely e também de Madame Satã. São dois melodramas sátiros. Olham a vida com um certo sarcasmo. Porém, esse lado satírico não encontrei em A Vida Invisível. E também não encontrei uma visão do Rio de Janeiro. Ouvi numa entrevista Karim elogiando a luz do filme. Fez justamente essa luz muito distante do que é, e poderia ser a luz do próprio Rio de Janeiro.

Ele também afirma que não quis fazer um filme realista, mas um filme sublinhado por uma aura. Não consegui encontrar isso. O que me parece é que Karim ficou muito subordinado à produção – e, nesse aspecto, à parte alemã da produção. Deixando que o filme fosse mais europeu, ele assim poderá agradar mais ao espectador europeu e do resto do mundo. E talvez até do Brasil. Mas deixou de lado a verdade que tem de existir numa obra de arte. E existe em seus filmes que eu conheço.

Gostei muito do romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. Claro que é um trabalho de uma iniciante, mas é de alguém que naturalmente tem o que dizer ao público. O final do romance é o mais antissucesso, é até mesmo simplório, e não tem nada que se aproxime da apoteose da presença de Fernanda Montenegro aos 90 anos comemorados. Certo. Confesso que ao ler a última página da novela chorei. Talvez pelo fato de sentir um trabalho verdadeiro. A presença da repórter que Martha Batalha foi está intacta, mas também a da futura grande escritora.

O Rio de Janeiro que não senti no filme está bem presente no romance. Tanto mais o Rio que começa na Tijuca ou mesmo em Santa Tereza quanto um pouco do Rio da Zona Sul de Ipanema e Botafogo. No livro, os homens estão quase totalmente escanteados, mas não acontece como no filme, onde o papel dos homens é de verdadeiros verdugos. Os anos 40 e 50 estão presentes no livro com inteireza. No filme, não há essa verdade.

Para Karim, a estória não teve nada a ver com o Rio de Janeiro, poderia ter acontecido em qualquer cidade do mundo. Martha Batalha conheceu como repórter a vida dos anos 50 particularmente e mostrou com o romance a sua visão. “Esqueceu” os homens quase totalmente para mostrar algumas mulheres. A Vida Invisível de Eurídice não é uma vida inexistente. Eurídice tem uma vida cheia de momentos de plenitude. Porém, todo mundo “esquecia” que ela estava querendo viver – e mostrar para os outros sua vida.

Certamente Martha botou o título em torno de Eurídice porque foi em torno dessa moça que ela construiu o seu livro. E deixa claro que tudo o que Eurídice escreveu está justamente no livro que ela Martha escreveu. A autora se transforma na personagem, e esta se transforma na autora.

Enfim, temos dois produtos diferentes, embora o filme tenha se “inspirado” no livro. O filme tem muito mais acabamento técnico-estético do que o livro, é verdade. Mas o livro tem sua autonomia e a jovem jornalista que nasceu no Recife e se criou na Tijuca mostrou que tem garra para ser uma grande escritora. Ela, aliás, já tem outro livro lançado, Nunca Houve um Castelo.

* Celso Marconi, 89 anos, é crítico de cinema, referência para os estudantes do Recife na ditadura e para o cinema Super-8. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.