Justiça de exceção ou defesa da Constituição?

O julgamento definitivo das Ações Declaratórias de Constitucionalidade, sobre a prisão em segunda instância, colocou o Supremo Tribunal Federal diante do dilema: respeitar ou não o texto constitucional.

*Por Aldo Arantes

Plenário STF - Rosinei Coutinho/STF

A questão foi discutida recentemente pelo Supremo ao menos quatro vezes. De 2009 a 2016, prevaleceu o entendimento que a sentença só poderia ser executada após o Supremo julgar os últimos recursos. Em 2016 por 6 votos a 5, a prisão em segunda instância foi autorizada.

É importante observar que esta reinterpretação da Constituição ocorreu em 17 de fevereiro de 2016, pouco antes do impeachment da Presidenta Dilma. O clima em que vivia o País era o da mobilização, falsamente moralista, de combate à corrupção, na verdade orientada contra o PT e seus dirigentes. É evidente que esta situação contribuiu com a decisão adotada pelo STF, ao ouvir “a voz das ruas”. O fato concreto é que a prisão em segunda instância viabilizou o afastamento de Lula da disputa presidencial.

O julgamento em curso no STF, mostrou que o placar da votação está em 4 votos a favor e 3 contra a prisão em segunda instância. E há uma razoável expectativa de que possa se formar uma maioria contra, abrindo caminho para a libertação do ex-presidente Lula.

Entre os votos fatoráveis está o do ministro Luiz Fux que assim justificou sua posição: “não há motivos que justifiquem uma alteração do atual entendimento da Corte, que permite a execução antecipada da pena – medida considerada um dos pilares da Operação Lava-Jato no combate à impunidade”.

Todavia os fatos revelados pelo The Intercep Brasil mostraram que a Lava Jato agiu com objetivos claramente políticos. Trouxe à tona a parcialidade do Juiz Moro e dos procuradores da Lava Jato. Segundo a revista Veja, feroz opositora do ex-presidente Lula, na Carta ao Leitor, se referindo aos diálogos veiculadas pelo The Intercept, afirma que “revela de forma cabal, como Sergio Moro exorbitava de suas funções de juiz, comandando as ações dos procuradores da Lava-Jato” . . . “ Fica evidente que as ordens do então juiz eram cumpridas à risca pelo Ministério Púbico e que ele se comportava como parte da equipe de investigação, uma espécie de técnico do time – e não como um magistrados imparcial” . . . “ os diálogos que publicamos nesta edição violam o devido processo legal, pedra fundamental do estado de direito”.

Diante de tais abusos é importante recordar que a Lei orgânica da Magistratura Nacional estabelece, em seu artigo 35, que são deveres do magistrado: “ I – Cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício”.

E o Código de Processo Penal define, em seu art. 254,IV, que “O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes: … IV – se tiver aconselhado qualquer das partes”.
E o Código de Ética da Magistratura em seu artigo 4º estabelece que ”Exige-se do magistrado que seja eticamente independente e que não interfira, de qualquer modo, na atuação jurisdicional de outro colega, exceto em respeito às normas legais”. O artigo Art. 8º fixa que “O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito”.

Ora as denúncias do The Intercepto Brasil confirmaram o que a defesa do ex-presidente Lula denunciava há tempos: a total parcialidade do juiz Moro e dos procuradores. Moro não cumpriu seu papel de juiz com a isenção que o cargo exige. Não levou em conta o princípio da presunção de inocência. Não identificou atos de ofício para condenar o ex-presidente, mas ancorou acusação no chamado “ato de ofício indeterminado”. Assim, adotou uma atitude completamente parcial, uma postura política, cujo objetivo era colocar Lula na cadeia e impedir sua candidatura à presidência da República.

Assim o processo contra o ex-presidente Lula está viciado e deve ser anulado.

Em entrevista ao jornal Correio Braziliense sob o título Gilmar critica Laja-Jato: “Organização criminosa para investigar pessoas”, o Ministro do STF, se referindo aos diálogos entre o Juiz Moro e os procuradores afirmou “a impressão que eu tenho é que se criou no Brasil um Estado paralelo”.

Também defensor da prisão em segunda instância o Ministro Barroso deu ênfase à necessidade de se ouvir a voz das ruas afirmando que ” O STF é o intérprete final, mas não é o dono dela e nem tão pouco seu intérprete único. A definição do sentido e do alcance da Constituição cabe também à sociedade como um todo”.

Qual voz das ruas? A voz democrática construída na base do contraditório ou a falsa voz das ruas construída na base de mentiras e fake news? É bom recordar que o nazismo e o fascismo construíram uma determinada “voz das ruas” para justificar suas atrocidades.

Uma voz das ruas está sendo constituídas pelo Presidente Bolsonaro, sua família e seus seguidores que inundam as redes sociais de falsas notícias e ameaças às instituições. Com tais postagens estimula o ódio e a mobilização contra STF.

O presidente Bolsonaro postou no site da presidência o Presidente Bolsonaro um leão acossado por hienas que o atacam, sendo uma delas o STF

Celso de Mello, Ministro decano do STF, comentando o vídeo, afirmou “Esse comportamento revelado no vídeo em questão, além de caracterizar absoluta falta de 'gravitas' e de apropriada estatura presidencial, também constitui a expressão odiosa (e profundamente lamentável) de quem desconhece o dogma da separação de poderes e, o que é mais grave, de quem teme um Poder Judiciário independente e consciente de que ninguém, nem mesmo o Presidente da República, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República”.

No passado o deputado Eduardo Bolsonaro disse que bastava um cabo e um soldado para fechar o STF. E agora declarou que “ se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta, ela pode ser via um novo AI-5”. Ameaça clara de nova ditadura. Aliás o pai tem reiterado que ainda não usou a borduna.

Já o movimento de direita, Vem Pra Rua, convocou manifestações em todo o país para o dia 3 de outubro, domingo, a favor da prisão de condenados em segunda instância.

E a pressão dos militares tem jogado papel no sentido de constranger o STF, particularmente as declarações do General Vilas Boas.
Ou seja, há um nítido processo de manipulação da opinião pública para pressionar o STF a manter a prisão em segunda instância.

No entanto, a Constituição é clara ao definir no seu artigo 5º, inciso LVII, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

E o artigo 283 do Código de Processo Penal, estabelece: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Se manifestando contra a prisão em segunda instância o Relator, ministro Marco Aurélio destacou “Tempos estranhos os vivenciados nessa sofrida República. Que cada qual faça sua parte com desassombro, com pureza d’alma, segundo ciência e consciência possuídas, presente a busca da segurança jurídica. Esta pressupõe a supremacia não de maioria eventual, conforme a composição do Tribunal, mas da Constituição Federal, que a todos indistintamente submete, inclusive o Supremo, seu guarda maior. Em época de crise, impõe-se observar princípios. Impõe-se a resistência democrática, a resistência republicana."

Já a ministra Rosa Weber afirmou “Não é dado ao intérprete ler o preceito constitucional pela metade, como se tivesse apenas o princípio genérico da presunção da inocência, ignorando a regra que nele se contém – até o trânsito em julgado”.
E o ministro Ricardo Lewandowski, disse “A jurisprudência desse Tribunal consolidou-se, salvo um lapso de tempo, que ofende o princípio da presunção da inocência a execução da pena de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença”,

Na mesma linha se expressou o representante da OAB ao afirmar que “O entendimento da OAB é no sentido da reafirmação da Constituição da República. É no sentido da reafirmação da independência e da liberdade do Poder Legislativo. Entende a OAB que em nome da força normativa da Constituição, em nome da afirmação histórica das garantias constitucionais, a ação declaratória deve ser julgada procedente”.

O argumento dos defensores da prisão em segunda infância no sentido de que a parte probatória do julgamento foi esgotada não procede. Pois na falta de provas, de ato de ofício, capazes de caracterizar ato criminoso por parte do ex-presidente Lula, o juiz Moro argumentou com os chamados atos de ofícios indeterminados.

Analisando essa questão assim se expressa o professor Pedro Serrano: “Na ausência de comprovação de que o ex-presidente tivesse recebido vantagens indevidas (o apartamento tríplex no Guarujá e a reforma do mesmo) como contrapartida por ter favorecido a empreiteira OAS em negociações com a Petrobras, Moro afirmou que o pagamento foi feito ‘em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam’. Além de meramente especulativo, o fundamento foge totalmente dos limites postos na acusação, tratando-se, portanto, de imputação sem qual tenha havido direito a defesa”.

E ainda: “Voltando ao caso de Lula, a afirmação de que ele seria ‘proprietário de fato’ do tríplex é extremamente frágil, pois o ex-presidente jamais teve a posse do apartamento. Como foi demonstrado pela defesa, havia somente um plano de aquisição do imóvel, do qual Lula desistiu. A defesa apresentou ainda documentos e provas, não levantados em consideração, de que o tríplex é de propriedade da OAS e foi, inclusive, incorporado como bem da construtora para efeito de recuperação judicial”.

A condenação de Lula, sem provas, evidencia a prática da justiça de exceção. O tratamento de inimigo dado a ele, sem respeitar a presunção de inocência e princípios de direitos contidos na Constituição, como o da condenação em última instância para determinar a prisão. Tudo isto não deixa dúvidas sobre o caráter político do seu julgamento.

A decisão a ser adotadas pelo STF sobre a prisão em segunda instância está intimamente ligada à defesa da democracia e de sua base legal, a Constituição. É dever de todo democrata defende-la. O constitucionalista Lênio Streck afirmou “Contra a voz das ruas, o ronco da Constituição”.

Brasília, 01 de novembro de 2019

Artigo atualizado no dia 02 às 11h38