O direito legal e o direito penal na ação do PCdoB que vai ao STF

Plenário da Suprema Corte está diante de uma das maiores responsabilidades sobre o Estado Democrático de Direito. Uma decisão pelos parâmetros da Constituição e do Código de Processo Penal restabeleceria, em grande medida, a legalidade democrática aviltada na adoção da última jurisprudência da Corte sobre prisão após condenação em segunda instância.

Por Osvaldo Bertolino

PCdoB STF

É até possível admitir, considerando o Judiciário num sentido institucional mais elevado, certo papel político para magistrados. Eles não gostam de se ver como simples "aplicadores da lei". A questão é saber onde começa e onde termina esse papel. Como distinguir a manifestação legítima da chicana, das segundas intenções. Aos magistrados é garantido o direito de manifestar-se fora dos autos, por qualquer meio de comunicação, mas dentro de parâmetros éticos, de uma forma que não configure prejulgamento ou suspeição.

É possível dizer que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso e Luiz Fux burlaram essa regra do Estado Democrático de Direito ao se pronunciarem, pela mídia, antes da sessão plenária que vai analisar o cumprimento de pena após condenação em segunda instância da Justiça, marcada para esta quinta-feira (17). Ambos defenderam posições meramente retóricas, sem a preocupação com o embasamento institucional.

Histeria da Lava Jato

Barroso, conhecido por sua defesa do moralismo de fancaria, disse que, “no fundo, no fundo”, os favorecidos com o fim dessa jurisprudência são “criminosos de colarinho branco e os corruptos”. “Os que são criminosos violentos, em muitos casos se justificará a manutenção da prisão preventiva”, afirmou. Essa cantilena constrói duas hipóteses. Na primeira, o que ele e seus aliados da mídia dizem é balela de quem se comprometeu com determinadas posições políticas e ideológicas. Na segunda, sua retórica alarmista tenta insuflar constrangimentos para os ministros que não pensam como ele.

O ministro apelou para a falácia ao dizer que até 2009 o entendimento do Supremo foi sempre no sentido de permitir a execução de pena após a condenação em segunda instância, e que isso mudou entre 2009 e 2016 quando “o direito penal chegou ao andar de cima”, numa referência à farsa do “mensalão”. Essa afirmação é obviamente fantasiosa tanto no diagnóstico da causa da adoção da jurisprudência quanto na sentença de que o “andar de cima” passou a ser visitado pelo direito penal.

De 1988 — quando a Constituição foi promulgada — até 2009, o Supremo não tinha sido provocado a analisar um trecho do artigo 5º da Carta Magna que diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O cumprimento desse artigo era uma obviedade ululante, rodrigueana. A afirmação dessa premissa ocorreu em uma votação que apresentou o elástico placar de sete votos a quatro. Barroso foi no mínimo maledicente ao dizer que sete ministros do STF saíram em defesa dos acusados no “mensalão”.

A revogação dessa jurisprudência pelo STF — também pelo placar de sete a quatro — ocorreu, sim, num ambiente contaminado pela conflagração política no país, em 17 de fevereiro de 2016, auge da histeria em torno da Operação Lava Jato. Como bem disse o ministro Marco Aurélio Mello, a decisão afrontou a legalidade democrática do país. "Não vejo uma tarde feliz em termos jurisdicionais na vida deste Tribunal, na vida do Supremo", afirmou. No plenário do STF ele disse que havia dúvidas se a Constituição poderia ser chamada de "Constituição Cidadã".

Tolerância zero

Essa é a causa do diagnóstico farsesco de Barroso. Na sentença de que o direito penal havia chegado ao “andar de cima”, a situação é ainda mais grave. É o caso de lembrar, como contraponto à falácia do ministro, da afirmação do empresário Luiz Fernando Furlan, que foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dando conta de duas classes no Brasil — a dos que pagam e a dos que não pagam impostos. Nessa segunda categoria está o grosso dos crimes do “andar de cima”, ignorados no “mensalão” e pela Operação Lava Jato.

A sonegação chegou ao estado da arte — antes de ser uma exceção, virou norma. Ela movimenta o caixa dois, que por sua vez abastece a evasão de divisas, que por sua vez alimenta a lavagem de dinheiro. Essa indústria da maracutaia, apurou a Receita Federal, tem como causas a sonegação pura e simples, a inadimplência (o contribuinte declara o imposto mas não paga) e, ainda, a chamada elisão fiscal — por esse nome está enquadrada toda a gama de recursos legais para o não pagamento de tributos.

Durante muito tempo convencionou-se (com base em estimativas da Receita) que a cada dólar arrecadado em impostos corresponderia outro sonegado. Não consta que, em algum momento, essas operações foram cercadas pela lei e que seus executores receberam o mesmo tratamento, comum nas grandes cidades, dispensado a camelôs e ambulantes, muitas vezes acusados de "criminosos contrabandistas” e praticantes de concorrência desleal por não pagarem impostos. Pelo contrário: eles têm conhecimentos nas malandragens do mundo financeiro e sabem muito bem conservar e ampliar suas fortunas.

O assunto já rendeu até uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), promovida pelo Senado em 1994. Mas suas apurações nunca foram devidamente denunciadas, muito menos punidas. No Brasil, quantas pessoas estão cumprindo pena por não pagar impostos? São os mesmos que defendem mais polícia nas ruas com metralhadoras a tiracolo, implantar uma política de “tolerância zero” e adotar a pena de morte. A causa e a sentença de Barroso são mera reprodução desse conceito.

Truculência de Fux

Fux, por sua vez, reiterou a conhecida fórmula de falar sem dizer nada e seguiu na mesma trilha de Barroso. Para ele, uma decisão pelo cumprimento do que determina a Constituição, modificando a jurisprudência, representaria um "retrocesso". Como justificativa, disse que o cumprimento de pena após o segundo grau “segue os padrões internacionais”. “Estamos adotando um precedente e temos de seguir essa regra. E estamos seguindo países como Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha, Portugal, Espanha e demais países do mundo”, afirmou.

Não é bem assim. Há, nesses países, complexidades que precisam ser consideradas antes de uma comparação simplista com a situação brasileira. O ministro apresentou uma tese puramente subjetiva. “O direito hoje, dependendo das soluções que se adota, ele gera comportamentos na população. Se o direito é muito flexível, as pessoas tendem a não cumpri-lo. Se o direito é um pouco mais rígido as pessoas alimentam que o Estado está disposto a punir e pensam duas vezes antes de delinquir”, sentenciou. Esse pensamento é coisa de gente truculenta, que não leva em conta o ponto de vista social, a forma correta de encarar o problema.

É uma tradição que vem sobretudo da fase final da ditadura militar, quando a economia do país entrou em colapso e o aumento das taxas de criminalidade disparou. A causa da violência que combate a violência ganhou mais e mais adeptos. E abriu amplo terreno para o discurso de candidatos que pregam consolidar a polícia como uma força que, ao invés de investigar e prender, executa sumariamente; ao invés de garantir a ordem e o equilíbrio social, movimenta-se à margem da lei, com o uso indiscriminado da violência.

Com esse discurso de Fux, é fácil imaginar um sistema de repressão que, sob o pretexto de combater o crime, adota o crime como método. O dolo passaria a ser considerado uma procedimento normal. Essa tese passa ao largo da inteligência, da capacidade de diálogo e raciocínio. É a máxima de que a solução mais eficaz para erradicar a criminalidade no país é o encarceramento e o extermínio dos pobres, a falácia de jogar sobre a base da pirâmide social a responsabilidade pela violência.

ADIN do PCdoB

A apologia à truculência desses dois ministros só pode ser defendida à margem do mérito da questão, do que determina efetivamente a legislação sobre a matéria. Como afirma a Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADIN) proposta pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) — que deve ser apreciada no plenário do STF —, um número considerável de prisões, na forma de antecipação de pena, vem sendo decretado “de forma incompatível com a extensão da garantia da presunção de inocência”.

A vítima mais conhecida dessa ilegalidade é o ex-presidente Lula, condenado num processo-farsa montado no movimento político que levou a maioria do STF a revogar, de maneira casuística, a jurisprudência de 2009. “É indiscutível, diante desse cenário, que é inconstitucional a determinação da execução da pena após decisão de segundo grau de forma automática — sem fundamentação a justificá-la”, afirma a ADIN.