Canonização da Irmã Dulce foi uma “santa alfinetada” do papa Francisco

Caros brasileiros, finalmente! Uma baiana vai virar santa. Irmã Dulce é a primeira santa que não só viveu como também nasceu no Brasil. Quando li essa notícia, fiquei feliz. O Brasil tem muitos santos! E está na hora de isso ser reconhecido. Fiquei feliz, pois para mim essa canonização no último domingo (13) no Vaticano foi altamente simbólica. Pois ser santa num país em que uma grande parte do governo e dos membros do Congresso se considera perto de Deus é um feito especial.

Por Astrid Prange*

Irmã Dulce

Fiquei feliz, porque com a Irmã Dulce o combate à pobreza volta a receber atenção política. Afinal, a pobreza no Brasil aumentou. Segundo o IBGE, entre 2016 e 2017, a taxa passou de 25,7% para 26,5% da população – e, segundo os dados mais recentes do Ministério da Cidadania, a pobreza extrema no país aumentou e já atinge 13,2 milhões de pessoas.

No último domingo, ao redor da imagem da “mãe dos pobres” estavam reunidos políticos brasileiros de todas as tendências, católicos e evangélicos. A simples pergunta dos fiéis fora e dentro da Basílica de São Pedro provavelmente foi: vocês vão seguir o exemplo da Irmã Dulce?

No fundo, a canonização pelo Vaticano é uma alfinetada do papa. Afinal, se uma freira conseguiu se empenhar no combate à pobreza, por que um governo que se define como cristão e proclama “Deus acima de todos” não o faz também?

Pois é. Até agora, o governo do presidente Bolsonaro se destacou mais por cortes na área social do que pelo combate à fome e à miséria. Os cortes atingem o programa habitacional “Minha casa, minha vida”, o “Bolsa Família” e a área da educação.

Ainda bem que a lista dos candidatos a serem canonizados é longa. São mais de 90 religiosos e notáveis: beatos, veneráveis e servos de Deus. Entre eles, Dom Hélder Câmara e a princesa Isabel, Frei Damião e Zilda Arns. Mas mesmo com todos os santos do mundo chegando ao Brasil, a pobreza não vai desaparecer. Pois caridade cristã não substitui a responsabilidade política por programas sociais.

O famoso arcebispo emérito de Olinda e Recife Dom Hélder Câmara, que morreu 20 anos atrás, sintetizou a relação ambígua e problemática entre política e religião em uma frase: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”.

A Irmã Dulce procurava apoio político pelas obras de caridade dela. E conseguiu. O mais recente apoio veio do próprio presidente Bolsonaro. No dia 15 de outubro, ele assinou uma portaria que autoriza o repasse de R$ 18 milhões ao Hospital Santo Antônio (HSA) – Associação Obras Sociais Irmã Dulce (OSID), em Salvador.

“Meu partido é a pobreza”, dizia Irmã Dulce. As palavras dela poderiam ter saído da boca do papa Francisco também. Mas ele deixou a santa falar por ele e já partiu para a próxima alfinetada: a Amazônia.

A canonização da Irmã Dulce aconteceu em pleno sínodo da Amazônia. O Sínodo, que reúne bispos dos nove países que ocupam a região até 27 de outubro em Roma, incomoda o governo brasileiro. Com a floresta em chamas, o evento que ia debater a falta de padres na Amazônia se tornou altamente político. Que haja santo para tanto atrito!

* Astrid Prange de Oliveira escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle