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Jorge Caldeira: No boteco com Ismael Silva

Volto a meus primeiros tempos profissionais, quando comecei a ter um conhecimento mais direto da rica pátria interior de pobres. Rio de Janeiro, 1976. Tentando entrevistar Ismael Silva. Quem viu o filme Boleiros (1998) dirá que as próximas palavras serão plágio da impagável cena em que o editor-executivo da Folha, Matinas Suzuki Jr. (em pessoa) manda um repórter entrevistar um craque de futebol desaparecido – mas foi assim que aconteceu comigo.

Por Jorge Caldeira*

Ismael Silva e Noel Rosa

Depois de muitas peripécias, alguém me levou a um boteco infecto na região entre o Estácio e Santo Cristo: ovos cozidos tingidos em cor de rosa choque; torresmo de anteontem; miúdos flutuando em óleo que fritou muitos pastéis e pinga da pior, aquela que matou o guarda. Nenhum vestígio da última faxina.

Sentado no balcão, uma figura de terno (no sentido literal da palavra: calça, colete, paletó) de linho S120 imaculadamente branco, camisa num tom pastel muito elegante de laranja, gravata branca. Tudo em alto contraste com a pele imaculadamente negra. Faz sinal, me aproximo. Quando dobro a curva do balcão, vejo o quadro completo: calça com costura rasgada a partir do joelho, único modo possível para o traje conviver com a perna muito inchada. Pés descalços e muito sujos.

Com meus 20 anos, foi impossível evitar uma escancarada exposição de meu constrangimento. Impávido, Ismael Silva me convida para sentar a seu lado. Em menos de 30 segundos de conversa, o brilho de sua pátria imaginária me transforma num ouvinte extasiado. Ele sente que venceu. Deixa absolutamente claro que eu tinha merecido a honra da conversa porque não desmereceria sua grande obra. E começa a tecer uma maravilhosa argumentação sobre a capacidade de melhorar muito uma nação mobilizando mentes através de versos. Mostra como fez isso em cada música, cada parceria, cada escolha de uma roupa.

Construiu e disseminou sua pátria sem escola, sem dinheiro, sem apoio. Sendo preso por qualquer delegado ressentido, xingado por qualquer branco, mal falado por sua sexualidade (sobre a qual nada falava). Absolutamente infenso a tudo que havia contra ao redor – porque vivia num Brasil de palavras que acoplava à música, sabia que era ouvido, dominava sua arte. Era o grande Ismael Silva, se sabia grande e me deu uma gigantesca lição de como a pátria se faz de baixo para cima.

Nessa construção as pátrias interiores se comunicam de modos nem sempre esquemáticos. Ismael Silva se orgulhava de ter sido parceiro de Noel Rosa – branco, estudante de medicina, mas construtor da mesma e exata pátria, que descreveu nos versos precisos de Coisas Nossas: “Malandro que não bebe / que não come / porque o samba mata a fome / Morena bem bonita lá na roça / coisa nossa, coisa nossa / O samba, a prontidão e outras bossas /são nossas coisas / são coisas nossas”.

Meus primeiros anos de atividade intelectual foram quase integralmente dedicados ao estudo desta construção de uma nação em versos. Construção paradoxal, na qual não se nega a realidade da fome nem a possibilidade do prazer extremo. Que vai do êxtase para a agonia na mesma estrofe. Onde o todo é o resultado deste percurso.

* Jorge Caldeira, escritor, publicou Mauá: Empresário do Império, História da Riqueza do Brasil e Nem Céu nem Inferno. Este texto corresponde a trecho de ensaio publicado pelo autor na Folha de S.Paulo em 13 de outubro de 2019.