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Rubem Braga: Os defeitos de Macunaíma

O “velho Braga” reclamava da sensação de que o livro de Mário de Andrade, pouco “acessível ao leitor comum”, parece “ter sido feito às pressas”

Rubem Braga

Considerado hoje um dos livros brasileiros mais originais do século 20, Macunaíma(1928), de Mário de Andrade, demorou a se firmar como cânone. O crítico Wilson Martins foi um dos primeiros a demolir a rapsódia do “herói sem nenhum caráter”. O poeta Manuel Bandeira, em carta ao amigo Mário, tampouco poupou críticas. Mas poucos textos se revelaram mais ácidos do que a resenha que o jornalista Rubem Braga, o maior dos cronistas brasileiros, escreveu para a Folha da Manhã em 4 de maio de 1937.

Já no título do texto – “Os defeitos de Macunaíma” –, o “velho Braga” deixava clara sua contrariedade com a proposta iconoclasta do romance marioandradiano. “Impressionados pela montanha de sugestões e de ‘achados’ do livro, começam a dizer que ele será uma obra clássica. Esquecem que na verdade é um bloco de onde poderia sair um verdadeiro livro, é uma façanha, uma proeza grande e bonita de inteligência, e nada mais.”

Braga reclama da sensação de que o livro, pouco “acessível ao leitor comum”, parece “ter sido feito às pressas”. Ainda assim, “muitos exageram o valor de Macunaíma”. Uma reputação que, de acordo com severa resenha, até Mário de Andrade deveria constatar injusta: “Acho que o próprio Mário deve sentir hoje esses defeitos de Macunaíma que, por outro lado, ele não pode corrigir, porque não há nada que seja um fato mais consumado que um livro que a gente já escreveu”.

Leia abaixo a íntegra da resenha de Rubem Braga:

Os defeitos de Macunaíma

Por Rubem Braga

Macunaíma apareceu em 2ª edição, o que aliás não quer dizer que esteja ganhando público. Mário de Andrade continua sendo um literário muito pouco lido, apesar de seu valor. E a culpa é dele.

Mário pegou um jeito de escrever que seria popular se não fosse precioso. Ele faz parte de um pequeno clube fechado de gastrônomos que há em São Paulo. E faz gastronomia na linguagem também – o paladar do povo é simples.

Se Mário de Andrade fosse preparar um vatapá, ele faria um vatapá tão bem feito, tão em regra, tão profundamente baiano, seguindo tantas recomendações de regras especialistas, que nenhum baiano gostaria do vatapá dele. Foi para a extrema-esquerda da língua.

Reagindo contra a aristocracia do fraseado solene e a hierarquia difícil dos pronomes, ele caiu no populismo mais difícil e precioso. Em Macunaíma, isso se explica, isso faz parte do livro. A linguagem, aí, está combinando com a ação, com o espírito do livro. Está direito.

Apesar disso, eu estimaria que alguém fizesse um livro com todo esse material precioso de Macunaíma, todo esse mundo de lendas e de falas brasileiras, de um jeito que fosse acessível ao leitor comum. Um livro onde um brasileiro se abrasileirasse mais, se reconhecesse e se aprendesse.

Pelo fato de ser um livro diferente dos outros, muitos exageram o valor de Macunaíma. Impressionados pela montanha de sugestões e de “achados” do livro, começam a dizer que ele será uma obra clássica. Esquecem que na verdade é um bloco de onde poderia sair um verdadeiro livro, é uma façanha, uma proeza grande e bonita de inteligência, e nada mais.

Eu digo “e nada mais” porque isso, para um sujeito com as possibilidades de Mário de Andrade, é mesmo muito pouco. Para usar a linguagem do seu herói, ele “experimentou força”. Prova que tinha muita. E quase que ficou nisso.

Mas deixemos o autor e vamos ao herói, que não tem nenhum caráter. Na verdade, tem algum. Tem, por exemplo, uma simpatia continua. É medroso, preguiçoso, mentiroso e sem vergonha, mas não é mau sujeito. O que ele quer é gozar, como aquele macaco da anedota.

Eu gostaria que ele fosse um pouco mais consistente, pois em certos pedaços do livro sinto que o herói anda no vácuo. Mas depois reage porque já ganhou uma figura própria, já tem o seu caráter e se impõe ao autor. O que prejudica uma certa continuidade do herói é ter o autor metido no livro, que deve ter sido feito às pressas, umas coisas que são interessantes em si, mas que ficam deslocadas.

O herói tem de viver essas coisas, e vive a contragosto. Sente-se que ele “não está em casa”. Há, na realidade, material que poderia ser jogado fora com proveito, porque destoa do resto. Sente-se a pressa do trabalho. O autor, em certos momentos, foi impressionado pelos processos de ação do herói, esquecendo, que, quanto mais absurdos forem os personagens e mais louca for a ação, mais prudente ou lógico deve se manter o autor encarregado de contar aquela desordem.

Acho que o próprio Mário deve sentir hoje esses defeitos de Macunaíma que, por outro lado, ele não pode corrigir, porque não há nada que seja um fato mais consumado que um livro que a gente já escreveu.

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