Equador: Passo atrás de Lenín Moreno é vitória parcial do povo 

O povo equatoriano deu a todo o continente, por meio de uma heroica e brava mobilização nos últimos 11 dias, algumas importantes lições. Primeiro, demonstrou inválido aquele pensamento que predica um “unilateralismo” da história, no qual a mão que açoita com a chibata nunca vê o chicote retornar contra si. Há na história, como sempre houve, espaço para o povo.

Por Pedro Marin

Equador

As medidas anunciadas pelo presidente equatoriano Lenín Moreno, exigidas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) em troca de um pacote de crédito de US$ 4,2 bilhões, não ficaram sem respostas. Elas geraram, sim, uma insurreição no país, como há tempos não se via no continente.

Segundo, provou que esse espaço não está dado por natureza, nem é assegurado eternamente pela presença adjetivo “democrático” em constituições – é pela firmeza e pela força que é conquistado.

Terceiro, demonstrou que, à medida que a força do povo se firma, a mão dos carrascos também endurece. Se não se pode ter ilusões quanto a espaços cedidos pelo acaso, também não se pode imaginar que teremos caminho fácil quando os buscando.

A despeito daqueles que tanto falam sobre o caráter democrático do tempo em que vivemos, o que vimos no Equador foi um povo que, apesar de desde o início ter deixado clara sua posição, foi respondido pela força das armas, por toques de recolher, por estados de exceção e pela militarização. Para que Lenín Moreno se dispusesse ao diálogo – há quem diga que é disso que se trata a democracia; o regime do diálogo – ao menos cinco equatorianos tiveram de dar suas vidas, mais de mil foram detidos, e um outro milhar ficou ferido.

Na democracia, mortos não falam, feridas não gritam e masmorras há aos montes. A agência de notícias Telesur, por não aceitar formar o conluio da imprensa regional que optou por diminuir e ignorar a importância dos eventos no Equador, foi logo tirada do ar.

Anotadas as lições de uma dura jornada, chegamos ao domingo. O presidente Lenín Moreno, que há sete dias dizia que não recuaria de sua decisão de aplicar as medidas exigidas pelo FMI, teve de dar o braço a torcer. Convocou uma reunião com as lideranças dos movimentos que o puseram contra a parede, e anunciou a liquidação do decreto 883, responsável pelo fim dos subsídios na gasolina e no diesel, que significou um aumento de até 120% nos preços.

O governo se comprometeu a derrogar o decreto e a escrever um novo, por meio de uma comissão composta por ele e pelos representantes indígenas, e acompanhada pela Conferência Episcopal Equatoriana e pela representação da ONU no país. As lideranças, por sua vez, comprometeram-se a encerrar a jornada de mobilizações.

Ainda assim, o que se vê até o momento é uma vitória parcial e momentânea do povo equatoriano. Apesar da derrogação do decreto 833 ser a principal reivindicação dos movimentos para que se pusessem ao diálogo e deixassem as ruas, o fim dos subsídios para a gasolina e diesel era somente uma das medidas antipopulares de uma longa lista anunciada pelo presidente.

Talvez a mais grave delas, a longo prazo, seja o fim de impostos para importação de tecnologia e carros e a redução de impostos para compra de máquinas – neste caso, estamos tratando de cerca de 32% das importações equatorianas. Além disso, prossegue sem previsão de discussão a situação dos manifestantes presos, o fim do estado de exceção e a situação dos ministros do Interior e Defesa, apontados como responsáveis diretos pela violência.

“Acordo público com o presidente Lenín foi a revogação do decreto 883. Neste momento, uma comissão está trabalhando na redação do decreto que o substitui. Celebramos a vitória, mas isso não termina até que o acordo seja totalmente concretizado”, publicou a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) no Twitter, em meio a rumores de que, na reunião a portas fechadas, o governo esteja tentando forçar um decreto substitutivo que já estava escrito.

De fato, a efetiva concretização de um acordo com um presidente que cinicamente se disse amante da paz depois de 11 dias de repressão, que prossegue até agora com a narrativa fantasiosa sobre um “golpe de estado” movido pelo ex-presidente Rafael Correa, e que mentiu repetidamente durante a semana – anunciando inclusive diálogos inexistentes – é o mínimo que se deve esperar antes de comemorar vitórias.

É certo que, desfeita a mobilização em Quito, o governo pode, com um pouco de ousadia, retornar à sua sanha desleal, assassina e mentirosa, ainda que isso custe ainda mais popularidade frente à opinião pública. Mas não sabemos se, neste cenário, o povo que tanto nos ensinou nos últimos dias teria igual capacidade de se mobilizar mais uma vez.

Apesar de uma vitória parcial, o saldo das mobilizações até o momento é de mais perdas ao povo do que ao governo. Oxalá que a lembrança de Quito rebelada seja suficiente para que, na mesa de negociações, Moreno recue mais. Até lá, lembremos nós das lições de Quito.