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Mário de Andrade está mais para T. S. Eliot ou Ezra Pound?

Em Constelação de Gênios – Uma Biografia do Ano de 1922, o inglês Kevin Jackson compara o livro Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade, ao poema A Terra Devastada, de T. S. Eliot. O jornalista e historiador Euler de França Belém rebate: Mário “talvez possa ser considerado” o nosso Ezra Pound, uma vez que, “além de grande poeta, teve outro papel, o de pesquisador, crítico e orientador cultural”. Nos 126 anos do nascimento de Mário de Andrade, o Prosa, Poesia e Arte resgata a polêmica. Confira.

Os poetas Ezra Pound e T. S. Eliot
Inglês compara Mário de Andrade com T. S. Eliot e Pauliceia Desvairada com A Terra Devastada

Por Euler de França Belém*

O livro Constelação de Gênios – Uma Biografia do Ano de 1922 (Objetiva, 567 páginas, tradução de Camila Mello), de Kevin Jackson, tenta provar que a literatura modernista surge, ou cristaliza-se, com a publicação, em 1922, do romance Ulysses, do escritor irlandês James Joyce, e do longo poema A Terra Devastada, do poeta americano T. S. Eliot. Jackson eleva o papel do crítico e poeta americano Ezra Pound, que contribuiu tanto para a consolidação do livro de Joyce quanto do poema máximo de Eliot. Não só: deu sugestões para melhorar e ajudou a publicar as duas obras.

Neste texto concentro-me mais na exposição do autor sobre a Semana de Arte Moderna, de 1922, e, sobretudo, a respeito de Mário de Andrade, que mereceram duas páginas (74 e 75). “De 11 a 18 de fevereiro, no Teatro Municipal [de São Paulo], aconteceu um dos eventos culturais mais significativos da cultura latino-americana moderna: a Semana de Arte Moderna, que apresentou as conquistas do modernismo brasileiro ao mundo. Seus organizadores principais foram o pintor Emiliano di Cavalcanti e o poeta Mário de Andrade – cuja maior obra, Pauliceia Desvairada, foi lida em voz alta pelo autor na noite de fechamento, e publicada pela primeira vez naquele ano”, escreve Jackson.

O compositor Heitor Villa-Lobos é apontado “como figura única e mais importante da música erudita da América Latina”. Ele apresentou, com “seus músicos”, “várias de suas composições – incluindo Quarteto Simbólico”. Jackson anota que Villa-Lobos é mais conhecido fora do Brasil do que Mário de Andrade. Porém, sublinha, “o talento mais extraordinário da Semana foi seu codiretor, Mário de Andrade (1893-1945). Com quase toda certeza o maior polímata que seu país já produziu, Mário de Andrade foi poeta, romancista, fotógrafo, jornalista e pioneiro da etnomusicologia”.

Estranha ou sintomaticamente, não há uma linha sobre o poeta e prosador Oswald de Andrade, outra figura central da Semana de Arte Moderna e do modernismo local.

Pauliceia Desvairada foi chamada”, segundo Jackson, “de A Terra Devastada da literatura latino-americana, e é em alguns aspectos formais similar ao trabalho de Eliot. A obra é composta em grande parte por frases poderosas e crípticas, sem métrica ou rima regulares, que parecem enunciadas pelos habitantes de São Paulo ou pela cidade em si”. O comentário é, para usar uma palavra cara a Mário de Andrade, interessantíssimo. Há mesmo pontos de contatos entre a poética de Eliot e a de Mário de Andrade, mas não haveria muito mais entre o americano e Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto?

Há uma tendência, notadamente a partir da leitura dos concretistas, a valorizar Oswald de Andrade e a subvalorizar Mário de Andrade. Este, além de grande poeta, teve outro papel, o de pesquisador, crítico e orientador cultural. Nesse sentido, Mário de Andrade talvez possa ser considerado, não o Eliot, e sim o Pound patropi. Porque, direta ou indiretamente, orientou, se não a obra diretamente, a forma de pensar e encarar a poesia e mesmo a prosa de autores como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, talvez até mesmo Manuel Bandeira, e também o memorialista Pedro Nava e o prosador Fernando Sabino, entre outros.

Não sei de onde tirou a informação, mas Jackson escreve: “A outra grande obra literária de Mário de Andrade, Macunaíma, também foi chamada de ‘Ulisses da América Latina’, em parte por causa de seu retrato da vida na cidade moderna, em parte por sua preocupação intensa com a herança linguística mista do Brasil, com suas várias línguas indígenas em interação constante com a língua imperial, o português. Parte da complexidade do romance pode ser atribuída à posição social ambígua de Mário de Andrade: embora sua família fosse composta por proprietários afluentes de terras, ele era um mulato, e não um descendente branco europeu”.

Três problemas, se são problemas. Primeiro, a mulatice de fato influenciou a literatura de Mário de Andrade? Segundo, isto travou seus contatos com a elite branca? É provável que a resposta às duas perguntas deve ser “não”. Terceiro, é provável que Jackson não conheça bem a literatura brasileira – ou talvez pelo fato de circunscrevê-la a 1922 – e, por isso, não menciona Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. O romance do escritor mineiro é o que se tem, no Brasil, de mais próximo de Ulisses. Catatau, de Leminski? Um filho menor.

Richard Ellmann e Russell Kirk

As obras de Joyce e Eliot, de tão ricas e complexas, devem ser, mais do que lidas, estudadas. Leitores comuns podem entendê-las, ao menos no básico, sem as múltiplas referências, ressonâncias e reverberações. Porém, aqueles leitores que, mesmo não sendo especialistas em literatura, querem saber mais sobre as obras e os homens que as escreveram podem consultar dezenas de obras. Para a conexão livros-criadores, sugiro, o que deve contrariar alguns críticos, três biografias.

James Joyce (Globo, 997 páginas), de Richard Ellmann, embora publicada há vários anos, permanece como a biografia clássica e com a vantagem de que o autor entende tão bem a obra quanto a vida do criador de Finnegans Wake. Joyce fica mais legível depois da leitura da pesquisa exaustiva de Ellmann, um expert em autores irlandeses (Wilde, Yeats, Joyce).

T. S. Eliot ganhou duas biografias alentadas e de qualidade. Não há edição em português de T. S. Eliot (Fondo de Cultura Economica, 377 páginas, tradução de Tedi López Mills), de Peter Ackroyd. O livro pode ser encontrado em sebos (Estante Virtual) em inglês e espanhol. Há uma ótima edição de A Era de T. S. Eliot – A Imaginação Moral do Século XX (É Realizações, 656 páginas, tradução de Márcia Xavier de Brito), de Russell Kirk. T. S. Eliot (Imago, 114 páginas) é um belo livrinho de Northrop Frye.

* Euler de França Belém é jornalista e escritor. Este artigo foi originalmente publicado em 7 de fevereiro de 2015 no Jornal Opção.