Onda de “malucos” como Bolsonaro e Trump não durará, diz historiadora 

Autora celebrada pelas biografias de Sigmund Freud (1856-1939) e Jacques Lacan (1901-1981), traduzidas em diversos países, a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco vê limites na onda que, mundo afora, elegeu presidentes como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Mesmo com a explosão das “fake news” no ambiente político, Elisabeth tampouco acredita que o avanço da inteligência artificial e os algoritmos dão a possibilidade de um controle de populações com a concordância das pessoas.

Elisabeth

“As redes sociais afetam todo o modo de pensar, não somente a psicanálise. É a cultura da velocidade, do julgamento pessoal permanente, é um problema para todo o saber”, afirma a autora, em entrevista ao Valor Econômico. Mas Elisabeth se diz “cética” em relação a onipotência das redes. “Há uma ilusão da tecnologia de querer controlar tudo. Na realidade, não é assim. As pessoas expressam-se livremente nas redes sociais, mas não acho que isso guia o mundo. Não acho que a tecnologia seja ligada ao controle das populações”.

Na opinião de Elisabeth – que acaba de lançar o Dicionário Amoroso da Psicanálise –, “vivemos em sociedades ocidentais muito despolitizadas, em que as reivindicações identitárias de feministas, dos antigos colonizados, dos povos autóctones – todas legítimas –, tomaram a frente de reivindicações econômicas e sociais. Isso é um fenômeno mundial, mas não vai durar. As pessoas não são tão estúpidas para se deixar dominar assim”.

Como explicar, então, as expressivas vitória de candidatos de extrema-direita? “No momento, temos o populismo. Quando os povos elegem presidentes como Bolsonaro e Trump, podemos nos desesperar. É verdade que as massas elegem malucos, ditadores”, admite. “Mas isso não pode durar. É uma conjuntura particular, com o aumento das desigualdades. Existe o desgosto do mundo com a classe política. Isso dá a impressão de que o povo quer um poder forte. Mas é uma ilusão.”

Segundo a historiadora, a vocação autoritária do governo Bolsonaro não põe em risco a democracia brasileira. “Não creio que vamos voltar ao período da ditadura. O grande perigo são as derivas na Amazônia, o fogo. Atualmente, com a globalização do poder, não é possível a volta ao tempo da ditadura”, analisa.

Em seu novo livro, a historiadora da psicanálise faz a volta ao mundo em 89 verbetes que contam a cultura criada pela psicanálise em sua idade de ouro. Passeia por Londres, Paris, Budapeste, Zurique e Nova York, seguindo os passos dos filhos rebeldes do pai da psicanálise, o vienense Freud, morto há 80 anos.

Dicionário Amoroso da Psicanálise viaja por correntes e interpretações, tomando atalhos para percorrer filmes e livros que transformaram a “revolução da vida íntima” em entretenimento, arte e literatura. “Optei por fazer a psicanálise circular em todos os verbetes do livro. Como a psicanálise é um fenômeno urbano, sua cultura está por toda a parte nas cidades”, diz Elisabeth, que também é professora na École Pratique des Hautes Études em Paris.

Mas a geolocalização da psicanálise já não é mais a mesma dos tempos em que Freud e Sándor Ferenczi (1873-1933), um dos seus mais próximos colaboradores, queriam fazer de Budapeste a capital do movimento depois da Primeira Guerra. “Um era um cientista, inventor de uma teoria; o outro, um terapeuta a serviço do paciente.” Paris chegou a ser a capital mundial da psicanálise, cabendo a Buenos Aires o rótulo de “primeira potência psicanalítica do continente americano”.

Ao tratar no livro sobre o Brasil, a autora destaca os 136 tons de pele dos brasileiros. Na entrevista ao Valor, ela responsabiliza a falta de unidade da esquerda como corresponsável pela vitória de Bolsonaro. “Mesmo que ele seja um presidente apavorante, foi eleito com uma maioria muito pequena. O mesmo aconteceu com Trump nos EUA. Portanto, também há contrapoderes”, comenta.

Para Elisabeth, a eleição de Bolsonaro “está ligada à despolitização de toda a esquerda” do País. “Os brasileiros não viram o perigo. Os candidatos hostis a Bolsonaro deveriam ter se reagrupado. Na Itália, uma aliança improvável contra [Matteo] Salvini foi uma boa coisa, mesmo se não durar. Claro que a Europa não vai bem, Brexit e coisas assim. Mas o pior é a despolitização”.

Seu livro traz um verbete sobre os insultos – um componente atual das redes e da política. “Está em todo lugar esse ódio – aos políticos, à psicanálise, aos intelectuais, o ódio às elites. Este é o ódio dos populistas.” Outro verbete trata das mulheres. De acordo com Elisabeth, “entramos no século das mulheres. Elas vão conquistar, como os homens, todos os poderes e vamos lutar cada vez mais contra o assassinato delas, contra o assédio sexual”.

O movimento Me Too é alvo de um contraponto da autora. Segundo ela, “as confissões públicas não são a solução. Num primeiro momento, sim, exposição da intimidade pode ser necessário – mas tem de parar. Se não, os testemunhos vão acusar não importa quem. A liberação da palavra foi importante, mas não pode ser transformada em campanhas puritanas, que vão visar os homens escritores ou tirar quadros de museus. Essas são derivas inaceitáveis”.