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Claudio Daniel: Sete poemas de Fabíola Lacerda 

Fabíola Lacerda, poeta nascida no sertão pernambucano e que hoje reside em Recife, desenvolve uma escrita poética original e ousada, utilizando a linguagem coloquial, o humor, o nonsense, a ironia e sarcasmo, conforme uma estratégia de provocação da seriedade lírica e dos preconceitos sociais.

Por Claudio Daniel*

Fabíola Lacerda

É uma poesia que dialoga com elementos culturais díspares, como as histórias infantis, os relatos bíblicos, a fotografia, o cinema, a música, as artes visuais, que são incorporados e ressignificados de maneira irreverente em sua escritura. Apresentamos aqui uma seleção de sete poemas da autora, enviados com exclusividade para o Prosa, Poesia e Arte (Portal Vermelho).

MOB MOLL MOBILE

alice tem orelhas de coelho morto
mostra com orgulho às amigas
dois diamantes negros cravados
em seu braço esquerdo
prova de amor maior não há
desde a invenção do garrote
schultz é seu zohar particular
no beijo de deus há a carícia da morte
na véspera da pele o demônio
que atrapalha a mira na névoa do bronx
a cabeça de uma mob moll
deve ser o mais lindo mobile
de cristal a balançar
ao sabor dos socos
no voo de gritos
na elipse que faz os tiros
no inominável oculto sob os dentes
que se ata uma alma à outra
pois que o espírito têm na boca origem e fonte
então cala logo essa boca sua vaca
beija tua salvação e engole

KËTUS

há uma baleia dentro da baleia
que engoliu jonas e dentro dele
outra baleia e outros jonas e baleias
porque jonas não ouve
assim que as bolhas de ar começam a boiar sobre as ondas
jonas exige que não responda
às balas de borracha – linques que jonas envia
isso- silêncio- reflita- reflita em silêncio
dispara pérolas e vai embora
na boléia da primeira baleia
não se escuta dentro d'água
ainda mais dentro de uma baleia
dentro de outra baleia
de outra baleia- de outra
há uma baleia dentro de jonas
e outras baleias e outros jonas

EU MATEI MEU PRÓPRIO IDIOMA

eu matei meu próprio idioma
e deixei minha caderneta numa das cadeiras da casa de chás
e chamei todas as cobras de poças de perfume
e passei minhas tripas pelo vago da agulha
e gritei teu nome
e tuas omoplatas responderam a todas minhas perguntas
homens mortos disseram me amar
os vivos me negligenciaram como a um espectro
eu fui ao fundo do mar
e na barriga da vicunha
me cobri de deserto
e nada mais precisei
nada mais quis
e silenciei o mar

TODOS OS HOMENS MORRERAM

todos os homens morreram
todos
ando por entre cadáveres
tentando não pisar em nada
apesar do cuidado
pelas pontas dos pés
ocorre-me de pisar num crânio ou outro
num fêmur numa tíbia
em pequenas falanges
estou só
quase sem ar
mas prossigo
suando sangue
chorando sangue
em minhas artérias circula o pus de muitos séculos
prossigo
intuo que talvez ainda haja vivos
mulheres andando perdidas
absortas
tentando encontrar alguma culpa após a desforra
que traga de volta o sentimento de realidade- a culpa
não há o que fazer
além de prosseguir
encontrar alguém
relatar a hecatombe
lavrar obituários
registrar como todas nós- inconspirantes
num mesmo instante
mesmo transe
desferimos os golpes acumulados desde lilith
mas hoje não queria falar sobre nada
é preciso procurar e não encontrar
é preciso deitar a mente na suspensão do pó
'il faut'
não ampliar o holocausto
o levante involuntário

SEM TÍTULO

leda tinha três pernas
e trepidava
sem as minhas
duas pernas de caniço
que a sustentavam.
até tremerem de cansaço.
leda agora é segura
feito cisne na gaiola.
com suas quatro pernas.
perna postiça não cansa.
leda não mais trepida.
sofá é confiável.
descansamos
cada uma pro seu lado.
leda e eu.
sabiáveis.
mulheres têm rosas na cabeça.

BLACK SQUARE

o silêncio abstrato é negro
o silêncio concreto é branco
o concreto amarela
o abstrato quebra
na tela de maliévitch
um elefante
um ruído
brame

VOCÊ DORMIRÁ EM MEUS OLHOS

Quando de vez enlouquecer, você dormirá em meus olhos
Pupilas constritas: totalmente: para que a luz não te incomode
Pensamentos cítricos como limão siciliano
Alguma volúpia: noz (moscada) ou páprica
Sonhos quais campos de lavanda do sul da frança
Será um repentino -no entanto- perene acalanto- os meus olhos
Você dormirá peremptório: Marmóreo como o tempo
E abismo será teu sono- fado licoroso- um porto
Os elísios de meus olhos te levarão aos desvãos mais recônditos da memória:
À primeira sucção nos mamilos róseos de tua mãe mocinha
Quanto os de maria de josé de belém de nazaré
(E como foi celeste tua mãe,
e como camelos foram os músculos de teu pai
ao te suspender pela primeira vez!
– você se lembrará de tudo isso com uma exatidão sinestésica )
Muito mais que isso e muito mais que tudo
Você terá, sobretudo, os sonhos mais novos
Aqueles ainda intocados pela imaginação humana
Quando de vez enlouquecer, você dormirá nos meus olhos
Você será o homem mais livre de toda história lítica férrea e plumária
Porque você não será escravo de seu próprio poder,
não precisará rezar aos domingos,
ser fiel a concepções ou insígnias
– essas coisas tão violentas quanto cômicas que os tiranos costumam usar
Sim, o mais livre de todos,
pois não há paz mais definitiva que a dos meus olhos enlouquecidos
Nos meus olhos de hospício até o teto é acolchoado com cetim,
espuma e nuvens
E não há outros loucos para incomodar
E toda a repetição do discurso será tua-
o repique dos sinos das catedrais das capelas e ermidas
– todo o eterno retorno será ditado pelo arbítrio de teu verbo soberano
Você será rei papa presidente première demônio deus único
ou apenas uma pulga a incomodar um vira-lata na calçada de uma igreja
Dentro de meus olhos enlouquecidos
Da minha paz demente
Dos meus lábios para sempre selados de tanta loucura:
Você dormirá.

* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.