A questão nacional na revolução chinesa

A questão nacional tem estado presente em todas as etapas da revolução chinesa. A referência inicial é a Revolução de 1911, quando, sob a liderança do médico Sun Yat-sen, líder do Partido Nacionalista, também conhecido como Kuomintang, uma espécie de partido-frente, foi derrubada a dinastia Manchu (ou Dinastia Qing) e implantada a República. Por Nilson Araújo de Souza* 

Logo depois cairia o governo provisório liderado por Sun Yat-sen e a república, que assumiria o caráter de ditadura militar, passaria a viver um longo período de grandes turbulências, que duraria até 1927, em que, de um lado, havia as tentativas de restauração monárquica e, de outro, recrudesciam movimentos separatistas no Sul da China.

Enquanto isso, permanecia o domínio de potências estrangeiras, particularmente da Inglaterra. Ao realizarem um verdadeiro despojo da China, só fortaleciam as lutas nacionalistas.

No Primeiro Congresso Nacional do Partido Comunista da China os trabalhos começaram em Xangai e depois, devido à perseguição policial, continuaram a bordo de um barco no Lago Sul em Jiaxing, província de Zhejiang / Foto: Exposição “Caminho para o rejuvenescimento”, no Museu Nacional da China

Inspirado pela Revolução de 1917 na Rússia e no calor das intensas mobilizações dos trabalhadores chineses a partir de 1919, um grupo de revolucionários, dentre os quais Mao Tsé-tung, fundou, em julho de 1921, o Partido Comunista da China. Mao Tsé-tung se tornaria depois seu principal líder. Dois anos depois da fundação, o PCCh chegou à conclusão de que o caráter da revolução chinesa seria nacional-democrático. Essa posição fora aprovada no congresso de 1920 da Internacional Comunista, quando se considerou que, nas colônias e semicolônias da Ásia, o caráter da revolução seria nacional-democrático. Coisa que, aliás, Mao reconhece em texto de 1928:

Nós estamos inteiramente de acordo com as decisões da Internacional Comunista sobre a China. Atualmente, a China ainda não está, de fato, senão na etapa da revolução democrático-burguesa. O programa de uma revolução democrática consequente na China compreende, em política exterior, a derrocada do imperialismo e a libertação nacional total, enquanto que, em política interna, compreende a liquidação do poderio e da influência da burguesia compradora nas cidades, a conclusão da revolução agrária, a abolição das relações feudais no campo e a derrocada do governo dos caudilhos militares. Só por meio dessa revolução democrática se poderá estabelecer uma base real para a passagem ao socialismo” (Mao Tsé-tung, “A luta nas Montanhas Tchincam”, 25 de Novembro de 1928, Obras Escolhidas, Edições em Línguas Estrangeiras, Pequim, 1975).

Com essa concepção, o PCCh estabeleceu uma aliança estratégica com os nacionalistas do Kuomintang, chegando a acertar o ingresso dos comunistas no partido-frente.

Mas, a partir de 1927, após a morte de Sun Yat-sen em 1925 e sua substituição por Chiang Kai-shek, o Kuomintang, sob o pretexto das mobilizações camponesas lideradas pelo Partido Comunista, passou a reprimir os comunistas, culminando com o massacre de Xangai. Deflagrou-se então uma guerra civil entre os dois partidos, que duraria até 1937, quando, premidos pelo enfrentamento ao inimigo comum, o imperialismo japonês, que havia começado a invadir a Manchúria a partir de 1931 e declarara guerra à China em 1937, o Kuomintang e o Partido Comunista estabeleceram uma trégua – e ao mesmo tempo uma aliança – que duraria até a expulsão dos japoneses em 1945.

Nesse período, Mao precisou melhor o caráter da revolução chinesa. No texto “A nova democracia na China”, publicado em 15 de janeiro de 1940, concluiu que a revolução, nas condições concretas da China, teria duas etapas:

A característica histórica da revolução chinesa é que ela se divide em duas etapas: a revolução democrática e a revolução socialista. A democracia da primeira etapa não é uma democracia no sentido geral, mas um tipo novo, especial, de estilo chinês, a Nova Democracia”. E segue: “a primeira etapa é a que visa transformar a sociedade colonial, semicolonial e semifeudal numa sociedade independente e democrática”. Reafirmou-se aí a formulação, feita pelo PCCh dois anos depois da sua fundação, do caráter nacional-democrático da primeira etapa da revolução. Nessa primeira etapa, assumindo o programa do Kuomintang para a economia, Mao definiu que “os grandes bancos, as grandes indústrias e os grandes negócios serão controlados por esta República”. Entrariam aí os monopólios, fossem estrangeiros ou chineses.

Já em novembro de 1926, pouco antes de iniciar a guerra entre nacionalistas e comunistas na China, no texto “Sobre as Perspectivas da Revolução na China”, Stalin, em debate com outros dirigentes soviéticos a propósito da previsão de Lenin de que os chineses teriam em breve seu 1905 (referência à Revolução de 1905 na Rússia), reafirmara o caráter nacional-democrático da revolução chinesa:

A primeira particularidade consiste em que a revolução chinesa, sendo uma revolução democrática burguesa, é ao mesmo tempo uma revolução nacional libertadora, que dirige sua arma contra a dominação do imperialismo estrangeiro na China. Nisto, ela se diferencia, antes de tudo da revolução na Rússia, em 1905. A questão consiste em que a dominação do imperialismo na China não se manifesta apenas em sua potência militar, mas também e sobretudo em que os ramos fundamentais da indústria na China, as estradas de ferro, as fábricas e usinas, as minas, os bancos, etc., se encontram à disposição ou sob o controle dos imperialistas estrangeiros. Mas disto resulta que a luta contra o imperialismo estrangeiro e seus agentes chineses não pode deixar de representar um papel sério na revolução chinesa. Por isto mesmo, a revolução chinesa se une diretamente às revoluções dos proletários de todos os países contra o imperialismo” (Stalin, Joseph. “Sobre as Perspectivas da Revolução na China”, 30 de Novembro de 1926).

No ano seguinte, em julho de 1927, Stalin, polemizando com os que, na definição do caráter da revolução, passavam por cima das particularidades nacionais, publicaria no Pravda o texto “Notas sobre temas de atualidade”, em que reafirma o caráter nacional-democrático da revolução chinesa:

Mas a oposição se esqueceu de que a China, à diferença da Rússia de 1905, é um país semicolonial oprimido pelo imperialismo; que, em consequência disso, a revolução chinesa não é uma simples revolução burguesa, mas uma revolução burguesa de tipo anti-imperialista; que o imperialismo possui na China os ramos principais da indústria, do comércio e do transporte; que a opressão do imperialismo não afeta somente às massas trabalhadoras da China, mas também a certas camadas da burguesia chinesa e que esta, por isso, em certas condições e durante certo tempo, pode apoiar a revolução chinesa”.

Derrotadas as forças japonesas, Mao Tsé-tung e Chiang Kai-shek tentaram formar um governo conjunto na China, mas os intentos fracassaram diante da exigência do Kuomintang, apoiada pelo governo dos EUA, de que fossem desarmadas as forças do Partido Comunista. Retomou-se assim, em 1946, a guerra civil na China, passando os Estados Unidos a apoiar o Kuomintang, levando este a perder cada vez mais sua feição nacionalista. Com maior enraizamento nas massas camponesas, que representavam a ampla maioria da população, os comunistas, que promoviam a reforma agrária nas áreas que iam libertando, ampliaram, de 1946 a 1949, seu domínio sobre o país, conquistando Pequim em janeiro de 1949 e levando Mao Tsé-tung a proclamar a República Popular da China em 1º de outubro do mesmo ano.

Um pouco antes, em março de 1948, em plena guerra contra os nacionalistas, e quando já se aproximava a vitória sobre eles, Mao Tsé-tung não abrira mão do caráter nacional-democrático da revolução chinesa: “O objetivo da revolução chinesa, na fase atual, não é abolir o capitalismo em geral, mas sim derrubar a dominação do imperialismo, do feudalismo e do capitalismo burocrático e fundar uma república de democracia nova das grandes massas populares, tendo o povo trabalhador como força principal”. (Mao Tse-tung. “Sobre a questão da burguesia nacional e dos nobres esclarecidos”.1 de Março de 1948).

Para levar adiante essa revolução, dizia Mao que se deveriam unir numa frente única as amplas massas populares:

Por grandes massas populares entende-se todos os oprimidos, prejudicados ou agrilhoados pelo imperialismo, pelo feudalismo e pelo capitalismo burocrático, nomeadamente os operários, os camponeses, os soldados, os intelectuais, os homens de negócios e outros patriotas, como foi claramente indicado no ‘Manifesto do Exército Popular de Libertação da China’, publicado em Outubro de 1947. Neste Manifesto, o termo ‘intelectuais’ designa todos os intelectuais perseguidos e subjugados; ‘homens de negócios’, toda a burguesia nacional perseguida e agrilhoada, quer dizer, a média e a pequena burguesia; ‘outros patriotas’, principalmente os nobres esclarecidos. A revolução chinesa, na sua etapa atual, é uma revolução em que todos os elementos mencionados se unem para formar uma frente única contra o imperialismo, o feudalismo e o capitalismo burocrático, e em que o corpo principal é constituído pelo povo trabalhador. Por povo trabalhador entende-se todos os trabalhadores manuais (operários, camponeses, artesãos, etc.) e os trabalhadores intelectuais que, pelas suas condições, estão próximos dos primeiros e que não são exploradores, mas vítimas da exploração”.

Instaurada a República Popular da China em 1949, o novo governo, liderado por Mao Tsé-tung, começou a implementar o programa nacional-democrático. Deixando isso claro, a 1º. de outubro de 1949, na Praça da Paz Celestial, Mao Tsé-tung declarou: “nossa grande terra está livre do sistema semicolonial e semifeudal, e inicia-se no caminho da independência, liberdade, paz, unidade, força e prosperidade”. A estrutura do novo Estado fora decidida um mês antes da proclamação da República Popular da China durante a Conferência Consultiva Política do Povo.

Além da estrutura do Estado, a Conferência aprovou o Programa Comum, que estabeleceu uma série de objetivos imediatos, destacando-se a aceleração da reforma agrária, que, por meio da redistribuição de terras confiscadas dos maiores latifundiários, deu continuidade ao processo iniciado nas zonas liberadas durante a guerra de libertação. Ao mesmo tempo, foram nacionalizadas indústrias estratégicas pertencentes ao capital estrangeiro, permanecendo apenas cerca de metade da produção industrial em mãos privadas. Também fazia parte do Programa Comum a garantia da independência e da integridade territorial do país, que vinham sendo ameaçadas pelas potências imperialistas que despojavam a nação chinesa.

Há controvérsias sobre o momento da passagem para a segunda etapa, a socialista. Mas, é provável que, a partir de 1952, com o estabelecimento do primeiro plano quinquenal, a estatização de parcelas ponderáveis da indústria (em 1952, 80% da indústria pesada já estavam em mãos do Estado), a coletivização da agricultura (mais de 75% da reforma agrária realizada) e a ênfase na indústria pesada (para isso, contou com a ajuda soviética, por meio do envio de material e de 10 mil técnicos), repetindo a experiência soviética, a China teria inaugurado a etapa de construção socialista, comprovando a antiga tese de Lênin de que não há uma muralha da China entre as duas etapas da revolução. Como a corroborar essa hipótese, Mao, em texto de 1952, propugna que a contradição principal, “de ordem interna”, passara a ser entre a classe operária e a burguesia nacional: “Uma vez derrubadas a classe latifundiária e a burguesia burocrática, a contradição entre a classe operária e a burguesia nacional passou a ser a contradição principal de ordem interna na China e, por consequência, não se deve seguir qualificando de classe intermediária à burguesia nacional” (Mao Tsé-tung. Obras Escogidas, Tomo V, 6 de junho de 1952). Mas, em questões como essa, nunca se pode falar numa data precisa. Como houve certo atraso na implementação do plano quinquenal e, portanto, das medidas econômicas, incluindo o projeto de Constituição, não se descarta a possibilidade de essa nova etapa haver começado pouco depois.

No discurso em relação ao projeto de Constituição, em 1954, Mao estabelece, no entanto, que o socialismo não se implanta “em um só golpe”, mas “deve ser feito gradualmente”. E descreve o processo que estaria se desenvolvendo na China que reputamos semelhante ao que fora a NEP (Nova Política Econômica) na União Soviética, tendo como um dos seus principais instrumentos o capitalismo de Estado:

A Constituição estipula a obrigação de realizar as transformações socialistas e a industrialização socialista do país. Aqui está a fidelidade aos princípios. Agora, aplicar o princípio do socialismo significa implantar o socialismo da noite para o dia, em escala nacional e em todos os campos? Isso pode parecer muito revolucionário, mas, como carece de flexibilidade, está fadado a cair em inoperância, encontrar oposição e terminar em fracasso. Assim, o que não deve ser feito em um só golpe deve ser feito gradualmente. Vejamos o caso do capitalismo de estado; o que é proposto é a sua implementação gradual. O capitalismo de estado não se limita a uma única forma – a de uma joint venture entre o Estado e o privado – mas tem formas diferentes. Observe as palavras ‘gradual’ e ‘diverso’. Isso significa que o capitalismo de estado será gradualmente implementado em suas várias formas, até atingir o sistema socialista de propriedade de todo o povo. A implementação deste sistema é o nosso princípio, mas sua execução deve ser acompanhada de flexibilidade. Aqui, o termo ‘flexibilidade’ aponta para o capitalismo de estado, que tem ‘várias’ formas e não apenas uma, e cuja realização é alcançada ‘gradualmente’ e não da noite para o dia“.

Mas o fato de iniciar a construção socialista não significa que a questão nacional tenha desaparecido da revolução chinesa. Num mundo ainda dominado pelo imperialismo, a questão nacional persiste mesmo depois de avançada a construção do socialismo.

A revolução chinesa de 1949, além de várias fases e de avanços e recuos, e de superada a etapa nacional democrática, que teria transcorrido de 1949 a 1952, viveria dois momentos distintos, que, ainda que interligados, apresentam suas especificidades: a etapa de construção do socialismo por meio do avanço da socialização dos meios de produção, que vai de 1952 a 1976 (morte de Mao), e a etapa de construção com base numa espécie de NEP tardia, prolongada e ampliada, implementada por meio das reformas deflagradas em fins de 1978 sob a liderança de Deng Xiaoping. Nossa hipótese é a de que, por ter sido encerrada prematuramente a NEP na fase inicial e, portanto, mais apropriada de construção do socialismo e, por conseguinte, não haver extraído dela todos os benefícios para essa construção, os dirigentes chineses teriam recorrido a uma espécie de NEP tardia nesse novo período.

Na fase inicial dessa etapa de construção socialista, tudo indica que, inspirando-se na experiência soviética, a transição se deu por meio de uma sorte de NEP, que utilizou o capitalismo de estado como um dos instrumentos mais importantes. Repetindo Mao: “Isso significa que o capitalismo de estado será gradualmente implementado em suas várias formas, até atingir o sistema socialista de propriedade de todo o povo”. Parece, no entanto, que a NEP teria sido atropelada por iniciativas como o “Grande Salto à Frente”, lançado em 1957, que, ao tentar acelerar a coletivização antes de a NEP esgotar seu papel, teria engendrado dificuldades adicionais na construção do socialismo. Não posso afirmar isso sem estudos mais completos, mas tenho trabalhado com essa hipótese. Mesmo assim, apesar de iniciativas posteriormente consideradas voluntaristas, como o “Grande Salto à Frente” e a “Grande Revolução Cultural Proletária”, deflagrada em 1967, o país se industrializou e melhorou as condições de vida dos trabalhadores, possibilitando o crescimento da economia, ainda que a um ritmo não muito elevado.

Ainda que a construção do socialismo tenha passado a preponderar nessa etapa, a questão nacional seguiu tendo um peso importante. A “campanha das cem flores” (“Que cem flores desabrochem, que cem escolas rivalizem”), lançada em 1956, pode indicar uma tentativa de, através da discussão, unificar o país em torno de uma ideologia que enfatizasse a questão nacional. Nesse período, por exemplo, por iniciativa da China e de outros países do Terceiro Mundo, constituiu-se o Movimento de Países Não-Alinhados. Ainda que inicialmente esse movimento tenha se iludido com a possibilidade de uma “terceira via”, considerando como igualmente nocivos o imperialismo estadunidense e a União Soviética, o discurso do premiê chinês, Chou Enlai, na Conferência de Bandung, em 1955, que fundou o movimento, declarou que seu objetivo seria “combater o colonialismo e exigir independência nacional”.

Apesar de que, a partir de 1967, a direção do PC chinês haja começado a qualificar a URSS de estado social-imperialista, sendo até mais perigoso do que o imperialismo estadunidense, aprovou, na Conferência dos Não-Alinhados em Argel, em 1973, a fórmula “contradição centro-periferia”, quando a contradição com o imperialismo estadunidense tornou-se o enfoque central dos Não-Alinhados, a ponto de que, na Conferência de 1976, escolheu Cuba para sediar o próximo encontro, no qual Fidel Castro seria eleito presidente do movimento.

No segundo momento, iniciado em 1978 e ainda vigente, a economia chinesa se modernizou, seu PIB cresceu a 9,5% ao ano durante mais de três décadas e ultrapassou o PIB dos EUA (se medido em termos de paridade de poder de compra). Os EUA estão declinando em termos relativos e a China está em ascensão É a inexorabilidade da lei do desenvolvimento desigual. Por que os Estados Unidos, do ponto de vista econômico, estão declinando em termos relativos e a China está em ascensão? A questão chave é que, nessa época decadente de domínio do capital financeiro, quem comanda seu Estado é a oligarquia bélico-financeira, e o usa, prioritariamente, para favorecer o parasitismo rentista e a guerra, e não o desenvolvimento das forças produtivas. Os pacotes fiscal-monetários adotados a partir da grande recessão de 2007-2009 expressam essa realidade: foram injetadas toneladas de dólares para comprar os títulos podres armazenados nos bancos. Não significa que não haja estímulo à atividade produtiva; significa que o preponderante, inclusive na crise de agora, é favorecer a oligarquia financeira. Por mais que possam haver ações que desenvolvam as forças produtivos, no fundamental sua ação objetiva favorecer os rentistas da casta bélico-financeira e a indústria da destruição, a indústria da guerra. Na China, ocorre o contrário, a força social que comanda o país, através do Partido Comunista, depois de superada a controvérsia sobre se a ênfase deveria recair nas relações de produção ou nas forças produtivas, estabeleceu como objetivo básico destravar o desenvolvimento das forças produtivas. E usa o Estado nacional como instrumento desse desenvolvimento.

Nesse período, o caminho trilhado por meio do que, na nossa hipótese de trabalho, seria uma espécie de NEP tardia, prolongada e ampliada recorreu a vários mecanismos de mercado. Por isso, há os que postulam que o forte desenvolvimento da China, cujo PIB crescia a 9,5% ao ano desde 1980 até 2012, se deve aos mecanismos mercantis. Acho que não é bem assim, senão o resto do mundo, as chamadas economias de mercado – o capitalismo -, dominadas por mecanismos mercantis, também estariam se desenvolvendo de forma acelerada. Os mecanismos mercantis na China são auxiliares. O que predomina é a ação do Estado sobre a economia. A ação do Estado, dirigida conscientemente, alavanca a economia e possibilita seu desenvolvimento. Os mecanismos de mercado, ao contrário, se ultrapassarem os limites em que possam ser controlados pelo Estado, sobretudo se, além de afetarem a parte da economia privada e suas relações com o setor estatal, também estiverem presentes ao interior deste setor, podem ser importantes fatores de crise, como ocorre nas economias capitalistas. Suspeitamos que foram eles que serviram de correia de transmissão para que a grande recessão deflagrada em 2007 se introduzisse na economia chinesa, derrubando seu ritmo de crescimento. E teria sido a ação do Estado chinês que evitou que a queda fosse maior.

Há quem ache que a China retrocedeu ao capitalismo. A nosso ver, capitalismo tout court não é, senão não estaria se desenvolvendo da maneira que tem se desenvolvido, pelo menos até 2012, a um ritmo muito elevado e de maneira sustentada, quando o capitalismo mundial se arrasta num crescimento medíocre, ou estagnação, há décadas. Por outro lado, não considero apropriadas as terminologias “socialismo de mercado” ou “economia socialista de mercado”, porque, por mais que determinada etapa do socialismo possa recorrer ao mercado, sobretudo na fase inicial, não significa que o mercado possa qualificar o socialismo. A construção e avanço do socialismo significam socializar cada vez mais os meios de produção e as forças produtivas e aumentar o papel do plano na economia, isto é, aumentar a ação da consciência sobre a economia, enquanto no mercado é a inconsciência, a competição, a anarquia, que predominam. O socialismo recorre ao mercado que já havia antes da revolução, ou que recria em determinada circunstância ao implantar uma espécie de NEP, principalmente quando triunfa numa economia capitalista atrasada, em que as forças produtivas se encontram muito pouco desenvolvidas (registre-se que, para Stalin, mesmo numa economia capitalista avançada e, portanto, monopolizada, como ainda persistem a pequena e média empresa a transição para o socialismo implica o recurso à NEP). Na construção socialista, o caminho da NEP tem como instrumento econômico fundamental o setor produtivo estatal e como principal instrumento coadjuvante o capitalismo de estado. Conjecturamos, então, que o que tem alavancado o desenvolvimento econômico chinês tem sido a ação do Estado na economia. Mais ainda, é possível que a redução recente do ritmo de crescimento (caiu da faixa de 9,5% ao ano para pouco acima de 6%) decorra da internalização dos efeitos da crise capitalista mundial usando como correia de transmissão os mecanismos mercantis.

Esse soerguimento econômico da China, ao lado da decadência dos EUA, vem possibilitando o renascimento do multilateralismo, que havia sucumbido com o fim da União Soviética. É certo que ele esteja limitado pela forte dependência da China em relação ao destino de suas exportações e das aplicações financeiras de parte significativa de suas imensas reservas cambiais (mais de US$ 3 trilhões), ou seja, os EUA. Mas, em resposta aos impactos da grande recessão, a China, dentre outras ações, como uma melhor distribuição de rendas (de 2008 a 2012, o salário real médio, o poder de compra dos salários, cresceu quatro vezes mais do que a produtividade, fazendo o índice de Gini baixar de 0,49 em 2008 para 0,40 dez anos depois), tem buscado diversificar o destino de suas exportações e da aplicação de suas reservas. Isso contribui para bloquear o impacto interno da crise mundial. Mais ainda porque, com o objetivo de bloquear a vanguarda chinesa nas tecnologias de ponta, o governo dos EUA deflagrou uma guerra comercial contra a economia chinesa. Nesse período, em que o papel do Estado e do mercado interno se fortalece como resposta à crise capitalista mundial e à agressão comercial por parte dos Estados Unidos, a questão nacional reassume peso destacado na sociedade chinesa. Tanto neste período quanto no anterior, a defesa da independência e da unidade da nação tem tido um papel destacado nas formulações e na prática do PC da China. Foi nesse contexto que Xi Jinping assumiu a presidência do país e retomou o “sonho chinês”, que tem como desafio central o “grande renascimento da nação”. Cabe o registro de que em 1820 a economia chinesa representava 30% da economia mundial, mas, depois da ocupação e pilhagem por potências estrangeiras ao longo do século XIX e primeira metade do século XX, reduzira esse peso para 5% à época da Revolução de 1949. Em 2018, às vésperas do aniversário de 70 anos da revolução, já representava 18,7% do PIB mundial pelos cálculos do FMI e 17,7% pelo critério do Banco Mundial (medido pela paridade do poder de compra).

* Nilson Araújo de Souza é doutor em Economia pela UNAM, com pós-doutoramento em Economia pela USP, autor de vários livros, artigos e ensaios sobre Economia brasileira, latino-americana e mundial; professor do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina da UNILA; diretor da Fundação Claudio Campos; membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB.