A Longa Marcha, símbolo da Revolução Chinesa

“Na China semicolonial e semifeudal, aqui a tarefa fundamental do Partido Comunista não consiste em passar um longo período de luta legal antes de empreender o levante e a guerra. Nem em apoderar-se primeiramente das cidades e depois ocupar o campo – mas exatamente o contrário.” (Mao Zedong)

Após o início da Longa Marcha histórica, há 85 anos, o povo chinês passou e passa por outras “longas marchas” — industrializar a China, alimentar a maior população do mundo, promover o desenvolvimento econômico e social, avançar na ciência e na tecnologia, reinventar a economia socialista. Em seu discurso deste primeiro de Outubro, na praça de Tien’anmen (Praça da Paz Celestial), o mesmo local que assistiu a proclamação da República Popular, por Mao Zedong, em 1949, o atual presidente da China, Xi Jinping declarou solenemente: “O passado da China foi escrito nos anais da humanidade. O presente da China está sendo construído pelas mãos de milhões de pessoas. O futuro da China será certamente melhor. Todo o partido, todo o exército e o povo de todos os grupos étnicos devem unir-se mais estreitamente. Não devemos esquecer a nossa essência, ter em mente a nossa missão, continuar a consolidar e desenvolver a nossa República Popular, e continuar a lutar pela realização da meta dos ‘dois centenários’ e realizar o sonho chinês do grande rejuvenescimento da nação chinesa”.

O exemplo do espírito de luta presente na Longa Marcha marcou profundamente a história chinesa nos principais momentos de transformação da sociedade daquele país. Foi Chu Enlai quem redigiu, em 1972, o anteprojeto das Quatro Modernizações – um amplo projeto nacional de política educacional, industrial, agrícola, ciência, tecnologia e defesa – programa colocado em prática por Deng Xiaoping quando assumiu a liderança suprema do regime, após a morte de Mao. Em discurso pronunciado na 3ª Sessão Plenária do XI Congresso do PCCh (dezembro de 1978), Deng definiu o objetivo das Quatro Modernizações: “uma imensa e profunda revolução; nessa nova Longa Marcha, para mudar a condição de atraso do nosso país e transformá-lo num moderno e poderoso Estado socialista”.

O ambiente geopolítico da Longa Marcha


Nas civilizações anteriores à era moderna, nenhuma estava mais avançada e desenvolvida do que a civilização chinesa, reconhece o historiador americano Paul Kennedy em seu livro “Prosperidade e decadência de um grande país” (1987). Tratava-se de um grande país, populoso, uma cultura brilhante, um solo particularmente fértil, e contando com uma estrutura de funcionários públicos altamente eficientes, formados pela doutrina confuciana.

Importantes avanços técnicos foram alcançados naquela época, ainda sob a dinastia Ming (1368/1644), como o leme para a navegação, as velas triangulares e navios de grandes estruturas. Estas conquistas permitiram o início das navegações intercontinentais, em direção ao Pacífico sul, até as Índias. Houve inclusive uma tentativa Ming de se apossar da península vietnamita, não vitoriosa.

Este florescimento do período Ming, no entanto, foi interrompido pela invasão da China pelas forças do reino Manchú – instalando desta forma a dinastia Qing, em 1644. Os imperadores da era Qing se recusaram a receber representantes considerados “bárbaros” do Oeste e adotaram o isolacionismo como política internacional de governo. Esta orientação fez com que a China mergulhasse em período de atraso em relação a tudo que havia sido conquistado antes. Assim, o país ficou à mercê da invasão de tropas britânicas e indianas – que obrigaram a dinastia no poder a assinar tratados desiguais e a ceder em concessões econômicas e territoriais, transformando a Nação em uma semicolônia.

No final do século XIX e início do século XX a China passava por um dos seus mais difíceis momentos. A dinastia Qing já não assegurava mais a unidade do império e sua fragmentação era evidente. Dessa vez, a China estava ameaçada não mais pelas “nações do Norte”, seus vizinhos tradicionais, mas por outras nações de ultramar, sendo a Inglaterra a principal. A ação inglesa, principalmente depois da conhecida Guerra do Ópio, desestabilizava e ruía o poder imperial. Sua queda era iminente, como bem assinalou Karl Marx em artigo publicado no New York Daily Tribune em 14 de julho de 1853. Escreveu ele: “a dissolução da velha China é tão certa como a de uma múmia cuidadosamente conservada num sarcófago hermeticamente fechado e que se expõe ao ar”.

Criou-se uma situação em que a China formalmente era soberana, mas na verdade se tornara uma Nação dependente das potências imperialistas. A China foi então retalhada em zonas de influência com as concessões e alfândegas administradas por outros países e até proibida de julgar crimes cometidos por estrangeiros, em seu próprio território. A China tornara-se fonte de matérias primas agrícolas e minerais para as potências industriais e um mercado cativo consumidor de produtos industrializados pelas grandes potências.

Entretanto, o aumento da exploração dos camponeses duplamente comandados pelo domínio Manchú e pelas potências imperialistas fez brotar a revolta no campo, que desembocou nos levantes de Taiping e dos Boxers. Setores médios gerados pela exploração capitalista nas cidades – como os estudantes, operários e assalariados urbanos – desenvolveram o espírito nacionalista. Estes movimentos unificados levaram à proclamação da República da China, em 1911. O grande líder desse grande passo civilizacional dado pelo povo chinês foi Sun Yatsen, com as bandeiras do fim da dominação Manchú, a defesa da Democracia, e o bem-estar para o povo. Este era o programa do partido nacionalista fundado por Sun Yatsen, o Kuomintang.

O dr. Sun Yatsen foi eleito presidente da República pela nova Assembleia Nacional, mas teve de renunciar logo em 1912, frente às pressões dos Grandes senhores da Guerra que dominavam o norte do país. A República agora comandada por estes senhores da Guerra não conseguiu resolver os problemas da crise agrária e manteve a política internacional de concessões às potências imperialistas. Com o desencadeamento da Primeira Guerra Mundial o governo chinês aliou-se às potências imperialistas antigermânicas, o que incluía o Japão – sendo que este se apoderou, por conseguinte, das possessões alemãs na China, a província de Qingdao e a ferrovia da Manchúria.

Esta grande aliança concertada pela China com as potências inglesas, francesas e japonesas incluía o envio de operários chineses para a Europa no sentido de substituir os que eram enviados para as frentes de batalha da Guerra Mundial. Terminada a guerra, na Conferência de Versalhes, a delegação chinesa reclamou dos tratados desiguais com os imperialistas. O Japão acabou revelando seu acordo em separado que lhe concedia o direito de apossar-se permanentemente das possessões alemãs na China.

Comício com sobreviventes da longa marcha

Os resultados da Conferência de Versalhes tiveram uma profunda repercussão na China. Foi desencadeada uma grande onda de protestos em muitas cidades a partir do dia 4 de maio de 1919 – que passou a chamar-se Movimento 4 de Maio – e que provocou uma inflexão de grandes consequências no país. Pela primeira vez na história da China os movimentos sociais estudantis e operários passaram a jogar papel na cena política nacional. Logo em seguida, o Kuomintang foi reorganizado e grupos marxistas fundaram o Partido Comunista da China, em 1921.

Sun Yatsen em uma de suas conferências em 1924, disse: “Nós somos o Estado mais pobre e fraco do mundo, ocupando o lugar mais baixo nos negócios internacionais; o resto da humanidade é a faca que corta e o prato a ser servido, enquanto nós somos o peixe e a carne. Nossa posição agora é extremamente perigosa; se nós não promovermos seriamente o nacionalismo e mantivermos juntos nossos quatrocentos milhões de chineses numa nação poderosa, estamos diante de uma tragédia: a perda de nosso país e a destruição de nossa raça”.

A união temporária do PCCh e do Kuomintang


Neste momento o recém-fundado Partido Comunista da China foi convidado por Sun Yatsen a se unir ao Kuomintang para organizar a Expedição Militar para derrotar os Senhores da Guerra do Norte do país, implantando um novo governo republicano para o conjunto da Nação. No mesmo período, o Partido Nacionalista estabelece relações diplomáticas com a União Soviética. Esta expedição ao Norte conseguiu derrotar as forças militares dos Senhores da Guerra – mas custou a vida do grande líder Sun Yatsen, fato que provocou uma profunda reorganização do Kuomintang, desembocando no fortalecimento da liderança de Chiang Kaishek e de sua política de combate aos comunistas e aos camponeses.

Em 1926, Mao Zedong une-se aos militares revolucionários e seu Exército Vermelho, chefiados pelo general Chu Teh. Juntos retiram-se para Kiangsi, no interior do país, com o objetivo de organizar suas bases de apoio. Ao lado de Chu Teh e Chu Enlai, em 1931, Mao proclama, nos territórios controlados pelo Exército Vermelho, a República Socialista da China, sob a inspiração da grande Revolução Soviética da Rússia.

Chiang Kaishek liderou um golpe militar em 1927 e iniciou uma feroz perseguição aos comunistas, assim como a retomada da política de concessões às potências imperialistas. No mundo se destacava a ascensão do fascismo na Itália, no Japão e na Alemanha. O Japão avança em sua ocupação na Manchúria, em 1931, e instala um governo títere que denominou Manchuquo. Chiang Kaishek tomou posição passiva diante da atitude dos japoneses, mas mesmo assim os comunistas propuseram a concertação de aliança tendo em vista derrotar o inimigo principal do país: os japoneses. Chiang Kaishek recusou essa aliança e promoveu de 1931 a 1935 cinco campanhas de cerco e aniquilamento tendo como alvo as bases centrais do Exército Vermelho. Na quinta campanha impôs severa derrota às forças revolucionárias obrigando-as a uma retirada estratégica. Essa retirada transformou-se na Longa Marcha, após uma reorganização da direção comunista que passou a contar com a liderança de Mao Zedong e Chu Enlai, além de Chu Teh. Esta grande retirada se consagrou como uma importante ofensiva política para enfrentar os Exércitos do Norte.

A Longa Marcha e sua trajetória


O exército comunista, que adotou a denominação de Exército de Libertação Popular, liderado por Mao Zedong, Chu Enlai, Wang Jiaxiang e Chu Teh foi composto por 100 mil homens (soldados e camponeses) percorreu 9.650 quilômetros por quase um ano (de 16/10/1934 a 20/10/1935) em condições extremamente duras. Durante a jornada, morreram cerca de 80% do contingente, incluindo um irmão de Mao Zedong.

Na verdade, dentro do Kuomintang, quatro correntes digladiavam entre si. Havia os que se declaravam pró-japoneses, propondo a paz com um acordo de cedência da Manchúria; outro setor propugnava uma resistência passiva; uma terceira ala propunha, ao contrário, uma resistência ativa – mas sem aliança com os comunistas — e por fim havia uma corrente que defendia uma aliança com os comunistas para fortalecer uma resistência ativa conjunta, força que se situava mais ao Norte e que já tinha experimentado ações de luta armada unificada com o Exército de Libertação Popular.

Nesta ocasião, o general Chiang Kaishek resolveu viajar até a província de Xian para enquadrar seus comandados, quando foi sequestrado e se tornou refém de um general rebelde. Esse general entrou em contato com os comunistas e propôs a eliminação física do chefe do Kuomintang. Mais uma vez os comunistas defenderam a organização de uma ampla frente unida para derrotar os invasores japoneses – para o que a morte de Chiang poderia criar problemas.

Apesar das resistências, Chiang Kaishek aceitou fazer a aliança com os comunistas para enfrentar os japoneses. A guerra civil foi suspensa e o Exército de Libertação Popular se juntou ao do Kuomintang. Os japoneses, neste meio tempo, ampliaram sua força de ocupação e mostraram na prática que apenas o Kuomintang não seria capaz de enfrentá-los. Chiang, no entanto, tentou por todos os meios enfraquecer o Exército de Libertação Popular chegando até a entabular acordos secretos com os japoneses.

Os comunistas, por sua vez, foram resolutos nas linhas de frente do embate contra os japoneses – não aceitaram a paz incondicional com os invasores e fortaleceram a frente social contra o Japão. A estratégia deu resultados e as Forças Armadas revolucionárias conquistaram a sua identificação como a força motriz da resistência nacional. Porém, depois da Grande Guerra (1939-1945), a guerra civil foi retomada por Chiang Kaishek, com a vitória progressiva dos comunistas. No dia 1º de outubro de 1949, foi proclamada a República Popular da China.

A Longa Marcha não apenas salvou o PCCh do aniquilamento, mas, sobretudo, forjou um novo Exército que proporcionou ao Partido um novo comando, uma nova estratégia e uma nova força. A nova orientação tinha como um dos fundamentos a teoria militar desenvolvida por Mao: “O inimigo avança, retiramos. O inimigo acampa, provocamos. O inimigo cansa, atacamos. O inimigo se retira, perseguimos”. Na elaboração de seu pensamento militar Mao teve a oportunidade de estudar várias lutas de resistência de seu próprio país, como as elaborações de Sun Tzu, e inclusive a experiência de um movimento de resistência de grande vulto na história mundial, que foi a Coluna Prestes[i], no Brasil.

Esse trabalho teórico e prático de Mao Zedong foi decisivo para a concretização de três grandes feitos históricos no final da primeira metade do século 20: a expulsão dos invasores japoneses, a unificação da nação e proclamação, no dia primeiro de outubro de 1949, da República Popular da China.

Da redação do i21/Portal Vermelho com as seguintes referências bibliográficas:

BREVE HISTÓRIA DEL PARTIDO COMUNISTA DE CHINA, Redator Chefe Hu Sheng, por la Oficina de Investigación de la História del Partido Subordinada al CC del PCCh (1994), Ediciones em Lenguas Extranjeras, Beijing

PROSPERIDADE E DECADÊNCIA DE UM GRANDE PAÍS, Paul Kennedy, (1987)

CHINA, DESFAZENDO MITOS, Wladimir Pomar, Publisher Brasil, (2009)

A REVOLUÇÃO CHINESA PASSADA NO CALEIDOSCÓPIO, Amaury Porto de Oliveira, (2011)

A LONGA MARCHA: FEITO DECISIVO PARA A CONSTRUÇÃO DA NOVA CHINA, Professor José Medeiros da Silva (2016), Portal Vermelho

[i] A Coluna Prestes, comandada por Luís Carlos Prestes, foi um movimento político-militar brasileiro ocorrido entre 1925 e 1927 ligado ao tenentismo. O principal motivo para a criação do movimento foi a insatisfação com o governo de Artur Bernardes e o regime oligárquico característico da República Velha, conhecido como política do café com leite. Suas reivindicações foram a exigência do voto secreto, a defesa do ensino público e a obrigatoriedade do ensino secundário para toda a população, além de acabar com a miséria e a injustiça social no Brasil. Em seus dois anos e meio de duração, a Coluna composta de 1500 homens percorreu cerca de 25 mil quilômetros através de treze Estados do Brasil.