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Claudio Daniel: Cinco poemas de Márcia Tigani

Márcia Tigani, poeta e psiquiatra paulistana, residente em São José dos Campos (SP), escreve poemas densos, alegóricos, enigmáticos, que remetem à trágica situação vivida no Brasil, em tempos de barbárie neofascista. Com notável apuro na escolha das palavras, na construção do ritmo, das metáforas e das imagens poéticas, ela transmuta a dor em arte, sem cair no tom confessional ou numa lírica engajada que submete a elaboração estética ao aspecto referencial.

Por Claudio Daniel*

Márcia Tigani

Ela aprendeu com Maiakóvski que a poesia pode, sim, ser um registro documental de eventos históricos e expressão da subjetividade, mas que o seu primeiro compromisso, sua prova de sinceridade, está no jogo imaginativo do poema, em sua elaboração sensorial e inteligível, que faz do poema um objeto artístico. Qual seria o sentido de fazer poesia hoje, em meio a tanta treva? A resposta está, talvez, nas palavras de Bertolt Brecht: “Nos tempos sombrios / se cantará também? Se cantará também sobre os tempos sombrios”.

MATA-BORRÃO

A palavra sangra:
em sua forma escandida
nutre artérias
causa arritmia.
É basilar e alada
como pétala ou gérbera
fluida e reluzente
como um rio
Sinovial e sinuosa
como bastião
deslizante ou batel
Feminina, nua
Louca ou ferina
como gineceu
Réstia sobre chão batido
óleo sobre tela
liga articulada
como artelhos
que envolvem a tarde
A palavra arde:
Verte, desata
o fio da meada
na taciturna forma
das sombras
Como mata-borrão.


REVELAÇÃO

Sobre o asfalto
escorre a turba
difusa, sonolenta,
a semear a trama
Ossos de basalto
tecem lavoura seca
Na oblíqua ordem
do mecanismo das esferas
Reflito o estigma
e a luz ventral assinalada:
É o grito, o grito universal
que arde a chama
A apófise ou eminência
acetinada, esconde a essência
das coisas líquidas
e podres do tecido
Revelação:
Sorveremos mais além
da lavra e da sombra
da serpente
Sob o asfalto
nasce a flor dessa semente

TERRA ESTRANGEIRA

A estrela fragmenta-se
na escuridão do núcleo
e se esconde :
simples mineral clivado.
Abre-se ao longe
a elíptica trajetória
de minério calcinado
que se espraia em cacos
A nova ordem exalta
latrinas, que expelem
no abjeto mundo
imundícies represadas
O grito do inaudito
Está na garganta dos vivos
morto aos olhos de espectros
inscrito em paredes de cela
Essa é terra de brancos absolutos
que aniquilam o cromo e o diverso.

CINERÁRIO
(Para Marielle)

Morrer sem grito
cingida e inerte
Liturgia de árvore
quase infinita
Sibila a voz, o canto
A arritmia
Vida que salga a carne
E a fagocita
Morrer sem mistério
Ou exantema
Silenciando a resina
Que viscosa adere
À pele e escorre fria
e lateja
Em sina, como a mão
que a fere
Matar a palavra úmida
que da boca verte
Matar a infância, o verso
e o riso
Matar a idéia, a pedra
o signo
Matar a estrada
ou luz em exercício
Viver para relembrar
a terra, as cinzas
O que ainda sobra
Do caule esmigalhado.
Viver para contar
a geométrica forma
da ausência, o grito
espesso do amor silenciado.

AMOR LÍQUIDO

O amor talhado em postas:
vertical e fria lâmina
sobreposta ao cio.
O amor na diagonal:
lastro, poço na estrada
atemporal, tardio.
O amor envolto em látex:
álgebra ou cálculo
diátese, arredio.
O amor liquefeito
escorre ágil, ágil
e afeito morre cedo
Como um rio.

* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.