Sem categoria

Urariano Mota: O terrível Machado de Assis ensinado nas escolas

Na ocasião do centenário da morte de Machado de Assis, em 29 de setembro de 2008, lembro que houve as mais justas homenagens ao nosso escritor. Mas o pior foi, em meio à torrente de justiça, uma revelação do mal imenso do Machado de Assis ensinado nas escolas brasileiras. E nada se comparou ao que lhe fez a revista Nova Escola, da Editora Abril. À sua lembrança e revelação recupero a seguir.

Por Urariano Mota*

Já na capa, ela anunciava: “No ano dedicado ao nosso maior escritor, saiba como trabalhar seus clássicos textos literários com alunos a partir do 3º ano”. Ainda que vacinado contra os enganos da imprensa, não pude resistir. Quem sabe?, eu me dizia, para de ser casmurro. Uma publicação da Fundação Victor Civita seria diferente. Afinal, a Nova Escola não era o mesmo que a revista Veja.

Entrei na revista, e entrei bem. Logo em um intertítulo da matéria – “Contos para pequenos” –, o espírito de Machado era expulso: “Nos ciclos iniciais, o ideal é começar a trabalhar Machado pelos contos, compreensíveis por leitores de qualquer idade e com uma história bem próxima da realidade infantil”. O leitor leu o que entendeu. Isto: os contos são mais simples que os romances. Mas contos, meus amigos, nunca foram mais simples que romances; contos podem ser tão complexos quanto romances; a extensão de uma narrativa não é o seu número de linhas; a extensão do que se lê é a duração na alma do leitor; pelo peso, volume e número de linhas, qualquer catálogo telefônico seria mais complexo que Missa do Galo, por exemplo.

Olhem só. Para crianças do 3º ao 5º ano, o Conto de Escola era assim apresentado: “As antíteses e os paradoxos permitem levantar uma série de discussões em sala de aula. Um dos objetivos dessa leitura é a distinção entre conto e outros gêneros, como apólogo, fábula e lenda”. No entanto, amigos, em Conto de Escola o que menos importa são as antíteses e os paradoxos. E conto, como gênero, não é diferente do apólogo, fábula ou lenda.

Erro de raiz

Então chegamos à sequência didática para Um Apólogo, indicado para estudantes do 4º e do 5º ano.

Material necessário: Cópias de Um Apólogo para todos. Livros e sites de História sobre o Rio de Janeiro do século 19. Caixa de costura com agulha, linha e alfinete e um pedaço de tecido.

Vocês leram o que entenderam: “caixa de costura com agulha, linha e alfinete e um pedaço de tecido”. Isso porque no apólogo dialogam uma agulha e uma linha e mais a reflexão de um alfinete! Imaginem como seria a leitura das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Cenário de caixões de defunto, funerárias, cemitérios, com pedras tumulares trazidas para dentro da sala de aula. Vozes do além, esqueletos, e vermes, melhor, só um, o primeiro deles em uma corrida, porque a ele se dedicam as memórias póstumas!


Detalhe da 1ª edição de Dom Casmurro: bastam cinco aulas para estudá-lo? 

Depois, chegamos ao ápice. Para os alunos do 9º ano recomendava-se o romance Dom Casmurro. Prometo ser imparcial e mudo como uma porta ou uma parede. Apenas vou transcrever. Por isso vamos à sequência didática de trabalho para o livro:

OBJETIVO – Ampliação da capacidade de análise literária. CONTEÚDO – Análise do foco narrativo. TEMPO ESTIMADO – Cinco aulas. (…) 2ª ETAPA – Os estudantes devem terminar a leitura do livro, se possível, sozinhos.

Mas devo logo terminar o pacto. Não podemos deixar de nos deter no Dom Casmurro que teve um tempo estimado de cinco aulas. Nem, muito menos, para a meta de alunos terminarem a leitura desse livro sozinhos. Há um erro de raiz, que derruba e põe por terra as intenções de um Machado para todos nesses termos.

Dúvida de Bentinho

Deus e o Diabo sabem – e a experiência confirma – que o Machado maduro não é compreendido pelos anos imaturos. Observem que o Dom Casmurro, para as turmas do 9º ano, passa a ser distribuído entre jovens de idades em torno de 15 anos. Imaginem como as digressões, chistes, circunlóquios, paráfrases, paródias, ironias, metáforas, inversões podem ser compreendidas por meninos e meninas em cinco aulas. Ora cinco. Multipliquem-nas por 20.

Daí que as intenções, na aparência mais pedagógicas, reduzam a complexidade de uma prosa livre às linhas exteriores da trama. Como se escreve na revista, abaixo do intertítulo “Romances para os jovens”:

No 7º, é viável começar a trabalhar com as grandes histórias de Machado. Um dos títulos que se encaixa bem nessa faixa etária é Dom Casmurro. O enredo gira em torno de Bentinho, um jovem aristocrata carioca, que desconfia que a mulher, Capitu, cometeu adultério.


Na visão da Nova Escola, Machado parece bom para cortar cabecinhas

Falar mais o quê? O maior escritor brasileiro nas escolas, segundo o método da revista Nova Escola, outra coisa não é: um Machado bom para cortar cabecinhas.

* Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances Soledad no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude. É colunista do Vermelho e colaborador do Prosa, Poesia e Arte.