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O dia em que Marlon Brando, Mick Jagger e John Lennon venceram Médici 

O teatro brasileiro foi duramente reprimido pelo regime militar (1964-1985). Houve censura a peças, perseguição a artistas, prisões, tortura e até morte. Um dos episódios de maior repercussão foi o “caso Living Theatre”. Após a prisão de membros do grupo no Brasil, celebridades como Marlon Brando, Mick Jagger e John Lennon lançaram um manifesto aberto ao ditador Garrastazu Médici. O Prosa, Poesia e Arte conta como foi o caso, com base nos arquivos da Comissão Nacional da Verdade. Confira.

Julian Beck e Judith Malina, fundadores do Living Theatre, foram presos em Ouro Preto em 1971
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O Living Theatre no Brasil

O grupo experimental Living Theatre foi fundado em 1947, em Nova York, pelo pintor norte-americano Julian Beck (1925-1985) e pela atriz alemã Judith Malina (1926-2015). No final da década de 1960, após ter sua sede fechada pela Receita Federal dos Estados Unidos, a companhia – já um ícone entre os grupos off-Broadway – se mudou para a Europa, numa espécie de exílio autoimposto.

Em 1969, o diretor do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa, fez um convite ao Living Theatre, em Paris, para que passasse uma temporada no Brasil. Julian Beck e Judith Malina desembarcaram em São Paulo em agosto de 1970, com mais sete integrantes do grupo, dispostos, de fato, a desenvolver um projeto com o Oficina. O convite de José Celso foi aceito, mas a possibilidade de criação de um trabalho em parceria, aventada por ele aos Beck, em Paris, nunca deu certo. O encontro entre os dois grupos foi vazado por divergências estéticas e políticas, além de conflitos pessoais.

Sem diálogo, sem acerto e sem consenso, o desentendimento foi generalizado e, em janeiro de 1971, cada um foi cuidar da própria vida: o Oficina mergulhou no projeto de viver sua particular experiência de comportamento grupal – na qual os integrantes se relacionavam de uma maneira rigorosamente comunitária, eliminando salários, abolindo relações de empresa e integrando fraternalmente todos os membros da equipe; e o Living Theatre se instalou em Ouro Preto (MG).

Uma vez na cidade mineira, o grupo deu início aos preparativos para a montagem de um trabalho inédito – O Legado de Caim –, contando, para isso, com novos integrantes do grupo, inclusive brasileiros. A peça se baseava numa obra de Leopold von Sacher-Masoch e tinha como pano de fundo a herança do período colonial no Brasil.

O ano de 1971 faz parte do período mais violento e repressivo do regime ditatorial. Apesar disso, a conjuntura brasileira da época parecia fazer todo o sentido para os integrantes do Living Theatre, a ponto de levá-los a um intenso nível de engajamento com ela. A fé do grupo no espírito de comunidade tinha tudo a ver com o projeto de construção de um modelo de vida adequado à firme convicção de que a energia libertária produzida pelo ambiente contracultural prevaleceria de modo ofuscantemente positivo.

A cidade de Ouro Preto, desde 1967, recebia no mês de julho o Festival de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais. Em 1971, o evento já era um sucesso, dividindo-se em quatro grandes áreas – teatro, dança, música e artes plásticas. Enquanto o festival ocorria, a população de Ouro Preto se deparava com elementos bastante díspares da cultura barroca local: vida alternativa, liberdade sexual e uso de entorpecentes como parte de uma ideologia. A presença de camburões da Delegacia de Ordem Política e Social (Dops) na Praça Tiradentes era constante durante todo o festival.

Era nesse cenário de experimentações libertárias e repressão policial que o Living Theatre pretendia se apresentar. Mas seu espetáculo, O Legado de Caim, não chegou a ser encenado naquele 5º Festival de Inverno. Em 1º de julho, data que marcava o início das atividades, agentes do Dops invadiram a casa na qual o grupo vivia coletivamente, na Rua Pandiá Calogenas, 23, sob o pretexto de apreensão de drogas.

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Prisão e perseguição

Em seu diário, Judith Malina conta que, uma vez informada da invasão, se dirigiu à sua casa e foi presa no caminho: “Íamos andando pelas ruas aladeiradas e empedradas. Um carro da polícia deteve-se ao pé de uma das ladeiras e três policiais se aproximaram de nós. Um dos policiais agarrou-me pelo braço; um outro agarrou o braço de Julian: ‘Estão presos’. Levaram-me até a porta de uma pequena cela. Mary, Birgit, Sheila e Pamela estavam lá dentro. Disseram-nos que iríamos para Belo Horizonte naquela noite”.

José Carlos Temple Troya, um dos integrantes brasileiros do Living Theatre, assim pontua sua noção do episódio: “Certamente, o Dops tinha seus próprios motivos para revistar a casa, em busca de armas ou outras evidências de subversão ou drogas, sobretudo no primeiro dia do Festival de Inverno. A prisão do Living serviria de advertência contra quaisquer excessos. Na confusão da batida policial, as únicas ‘evidências’ coletadas foram os remédios dos membros da companhia”.

No total, foram presos 21 membros do Living Theatre. Os homens foram levados para o Dops e as mulheres, para a prisão feminina Estevão Pinto, ambos em Belo Horizonte. Judith ouviu de suas companheiras de cela o que havia ocorrido em sua casa: “Jimmy Anderson estava fazendo o jantar. Inesperadamente, 20 policiais com cães penetraram na casa e deram início a uma busca frenética, virando tudo de cabeça para cima, atropelando, às avessas. Ninguém teve oportunidade de falar, de pensar, de fazer uma pergunta sobre o que estava acontecendo. Todo mundo foi posto em carros da polícia e levado para longe. Perguntei se a polícia tinha encontrado, na casa, alguma coisa que nos incriminasse; as moças explicaram que não; contudo, o policial de serviço na porta da cela dizia ‘maconha’ repetidamente, embora lhe assegurássemos que nenhum de nós a fumava”.

Foram levados para o Dops de Belo Horizonte naquela noite. No dia seguinte, oito integrantes da companhia teatral foram soltos: Julian Beck, Judith Malina, Mary Kraft, Andrew Michel Nadelson, Steven Bem Israel e os brasileiros Edson Arão Madaleno, Luis Henrique Rocha e Miguel Couto. Os outros 13 membros do grupo, autuados em flagrante com uma pequena quantidade de maconha, permaneceram presos. Eram eles: Vicente Segura (peruano), Sérgio Godinho (português), Sheyla Mary Charlesworth (canadense), Pamella Badyk (australiana), Birgit Knabe (alemã), José Carlos Templet Tróya e Ivanildo Silvino de Araújo (brasileiros), Hans Sebane (austríaco) e os norte-americanos Luck Theodore, James Anderson, Roy Harris Leone, Thomas S. Walker e William Lawrence Howes.

Julian e Judith regressaram a Ouro Preto, na expectativa de que os outros integrantes do Living Theatre, ainda encarcerados, fossem soltos. Porém, no dia 3 de julho o casal foi novamente detido, agora em uma galeria de arte, e levado à delegacia do Dops em Belo Horizonte, também sob a suspeita de ter cometido crimes “subversivos”.

Nos interrogatórios, conduzidos pelo Dr. Renato de Silveira Aragão, foram feitas muitas perguntas sobre a proveniência de livros e revistas encontrados na casa onde vivia a companhia. Eram títulos considerados “perigosos” pelo Dops, como obras de Karl Marx e Mao Tsé Tung. Uma sacola com grande quantidade de maconha, que supostamente teria sido desenterrada pelos policiais no fundo da casa, fora exibida a Judith.

Sobre essa acusação, ela relata: “Disseram-nos que ela [a maconha] havia sido desenterrada de bem debaixo de nossa casa. Mostraram-nos fotografias de policiais e cães com os pacotes descobertos, mas não parecia com nossa casa. Em certo lugar estava escrito em inglês: ‘OLHE’. O que era aquilo? Julian diz que isso prova que não fomos nós, mas, sim, nossos inimigos que colocaram a maconha lá. Enterraríamos uma coisa e logo depois indicaríamos onde ela estava? O que é isso, o que quer dizer? No dia 6 de julho foi decretada nossa prisão preventiva, até sermos julgados pelo juiz de Ouro Preto”.

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Um manifesto histórico

O juiz era Moacir Silva Andrade e o julgamento do “caso Living Theatre” se iniciou no dia 26 de julho. Foi concedido habeas corpus para dez membros do Living, exceto Judith Malina, Julien Beck, James Anderson, Pamela Badik e Sérgio Godinho. Nesse momento, o caso já ganhava expressiva repercussão internacional. Em 29 de julho, o Jornal do Brasil publicava a notícia de que o cineasta Pier Paolo Pasolini, o escritor Alberto Moravia e o literato Umberto Eco faziam um apelo pela libertação do grupo.

Um manifesto com 120 assinaturas de jornalistas, pintores, atores, críticos, músicos, cineastas, entre outros, foi enviado de Nova York ao general-presidente de plantão, o ditador Emílio Garrastazu Médici, pedindo a “libertação dos atores do Living Theatre”. Datado de 16 de agosto de 1971, o histórico manifesto era assinado por celebridades como Jane Fonda, Marlon Brando, Betty Friedan, Mick Jagger, John Lennon, Yoko Ono, Tennessee Willians e pelo prefeito de Nova York, John Lindsay, entre outros.

Enquanto o julgamento se desenrolava, Malina, Beck e os outros membros não sabiam ao certo quando – e se – seriam postos em liberdade. Mas a repercussão internacional do caso, sobretudo depois do lançamento do manifesto, encurralou Médici e a ditadura. Em 28 de agosto, jornais do Brasil inteiro estampavam nas manchetes a decisão do presidente da República que, por decreto, expulsava os integrantes estrangeiros do Living Theatre do País.

A Folha de S.Paulo fez a seguinte chamada para a matéria, no dia 28 de agosto de 1971: “Acolhendo exposição de motivos do ministro Alfredo Buzaid, da Justiça, o presidente Médici decidiu expulsar do País todos os integrantes do grupo Living Theatre – entre eles os atores Julian Beck e Judith Malina Beck – que estavam presos em Minas Gerais desde julho, acusados de usar tóxicos e perturbar a ordem. A expulsão fundamenta-se também no fato de que a prisão do grupo vem sendo explorada no exterior por inimigos da Pátria”.

Às denúncias de uma prisão arbitrária dos membros do Living Theatre, somam-se também a tortura e o tratamento desumano nesse episódio de repressão por parte dos militares. Em 1º de outubro de 1972, o Jornal do Brasil noticiou que a Justiça havia absolvido todos os integrantes do Living Theatre – “nada havia sido provado”. Mas Ben Israel, libertado no dia 2 de julho de 1971, afirmou, quando já estava nos Estados Unidos, que membros do Living Theatre haviam sido torturados.

Em 23 de julho, o Jornal do Brasil noticiou uma declaração em que Julien Beck afirmava que ele e sua esposa não estavam sendo torturados. No entanto, em relato escrito posteriormente, José Carlos Troya explicou que o casal não endossou a denúncia de tortura pelo efeito da autocensura, uma vez que, naquele momento, tal declaração certamente agravaria sua situação.

Troya afirma, em seu diário, publicado no jornal Estado de Minas, em pleno governo Médici, que Judith teria experimentado grande conflito interno: “Entristecia-a, porém, o fato de não ter podido revelar o clima da casa de torturas em que viveu; e tampouco pôde mencionar os gritos lancinantes no meio da noite durante as rotineiras e repetidas sessões de tortura, com a intenção de extorquir delações, ou os tristes relatos de cada um que retornava, se é que retornava, depois de ter sido torturado tantas vezes. Na situação dubiamente privilegiada de serem constantemente alvo de entrevistas, Julian e Judith gozavam de uma mobilidade incomum dentro do Dops, o que os levou a estar fisicamente muito próximos às torturas em ato e, consequentemente, à agonia de ouvir e deverem se calar”.

Troya confirma a tortura sofrida por Ivan Silvino e Vicente Segura: “Muita controvérsia suscitou o caso dos choques elétricos ministrados pelos algozes de Thacyr [Omar Menezes Sia, delegado do Dops] no potiguar Ivan Silvino e em Vicente Segura, o peruano, durante os interrogatórios da madrugada de 2 de julho. Depois de envolver eletrodos no dedo indicador da mão direita e no pênis de Ivan, que permaneceu de pé, um dos torturadores acionou a manivela da chamada “maquininha marrom”, dando-lhe um choque elétrico. Como Ivan permanecesse inerte, ameaçou queimá-lo vivo. Também a Vicente envolveram-lhe um eletrodo no dedo, deram-lhe um choque e, por recusar-se a revelar nomes, o jogaram brutalmente contra a parede”.

Em artigo publicado em 2015 no El País, o escritor peruano Mario Vargas Llosa menciona tanto o manifesto quanto os relatos de tortura: “Foi mesmo por milagre que se livraram de que os gorilas brasileiros os submetessem à sua tortura favorita, o pau de arara, do qual foram vítimas outros atores seguidores de suas teorias que não tinham um passaporte norte-americano nem um cônsul que se interessasse por sua sorte. Mas foram para a prisão, sim, acusados de serem pervertidos e drogados, e é provável que passassem alguns anos por lá se não fosse a formidável campanha de escritores, políticos e personalidades eminentes do mundo inteiro que bombardearam a ditadura brasileira pedindo sua libertação. Assustados com essa mobilização, os generais – que não conseguiam entender por que meio mundo se interessava em defender uns malucos degenerados que tinham transformado seu casebre de Ouro Preto em uma suruba frenética e ininterrupta – optaram por expulsá-los do Brasil e devolvê-los aos Estados Unidos, mediante um decreto que os chamava de subversivos e narcômanos e que é um monumento cabal à confusão e à estupidez”.

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A resistência do teatro

Censura e repressão. Com o uso simultâneo desses dois instrumentos de coerção, a ditadura militar manteve presença no primeiro plano do teatro brasileiro. Sua ação punitiva sobre a vida teatral foi particularmente feroz e sem precedentes na história do País. O “caso Living Theatre”, embora emblemático, não foi o único

Centenas de peças foram impedidas de chegar ao palco ou chegaram profundamente mutiladas. Outras tantas obras simplesmente deixaram de ser escritas – a autocensura calou seus autores. Vários artistas sofreram prisões; alguns não escaparam da tortura ou mesmo da morte. Muitos optaram pelo exílio – convencidos de que essa era a última possibilidade quando a resistência interna se tornou impossível.

O regime militar avançou sobre o teatro por diversas razões. A relação direta e imediata entre arte e política e a constante busca por uma dramaturgia capaz de pôr em cena os problemas da sociedade brasileira transformaram a cena teatral em um espaço de notável vitalidade artística, ousadia cênica e renovação de toda a estrutura dramatúrgica.

Como consequência quase inevitável de sua própria efervescência criadora, o meio teatral ocupou um espaço público real – e inédito – de resistência democrática: abriu os palcos para convocar a plateia a participar de manifestações públicas de oposição; realizou assembleias e reuniões; chamou à greve contra a censura; defendeu a livre manifestação das ideias e das artes; protagonizou passeatas e vigílias cívicas; compareceu a atos públicos; solidarizou-se com os perseguidos do regime; e auxiliou militantes e organizações clandestinas de esquerda.

O processo coercitivo desencadeado pelos militares transbordou sobre o teatro, sobretudo a partir da edição do AI-5. Entre 1964 e 1968, a censura ainda não era absoluta – o que permitia à produção teatral ocupar todas as brechas deixadas livres pelo arbítrio. As experiências do teatro de Arena, do grupo Oficina ou do grupo Opinião, transformaram-se em marcos de resistência ao regime.

A partir de 1969, tudo era censurado – especialmente um teatro combativo, insatisfeito com suas condições de existência e polarizado em torno de propostas para superar os impasses provocados pelo terror cultural. Entre avanços e recuos, a década de 1970 valorizou o espetáculo puro, a teatralidade absoluta, a metalinguagem, a transformação das companhias teatrais em grupos e, logo a seguir, em comunidades.

Já nos anos de 1980, último período da ditadura, o teatro acusou certa retração em comparação com a efervescência política e criativa das décadas anteriores. Mas o espírito inquieto, contestador e experimental permaneceu nos grupos jovens – como Jaz-O-Coração, Tapa, Tá-na-Rua, Pessoal do Cabaré ou Pessoal do Despertar. O regime autoritário se encerrou em 1985. O teatro continua vivo.