García Linera, vice de Evo: por que os “neoliberais 2.0” vão perder 

Para Álvaro García Linera, 56, vice-presidente da Bolívia desde 2006, os novos projetos neoliberais, “que surgiram para supostamente derrotar a ‘onda vermelha’”, não oferecem horizonte real pois “são projetos de vingança”. Em entrevista à Folha de S.Paulo, o ensaísta, sociólogo e matemático, que concorre junto a Evo Morales pela quarta vez, refere-se aos atuais governos de Brasil e Argentina.

Álvaro García Linera e Evo Morales

Tido como o estrategista do governo, García Linera participou da guerrilha armada nos anos 1980 e ficou preso durante cinco anos. É autor dos livros A Potência Plebeia (Boitempo, 2010) e Democracia, Estado, Nação (disponível online, sem tradução). Originário da classe média alta de La Paz e de ascendência europeia, García Linera fala com a convicção de um marxista engajado e com a retórica de um militante – sem deixar de responder a provocações com humor e sarcasmo.

Folha de S.Paulo: Evo Morales e o sr. são favoritos para a eleição na Bolívia. Na Argentina, deve vencer o kirchnerista Alberto Fernández, enquanto, no México, Andrés Manuel López Obrador segue com alta popularidade. A esquerda está retomando espaços na América Latina? 
García Linera: O que surgiu nos últimos tempos como alternativa à esquerda foi um neoliberalismo 2.0, muito diferente daquele dos anos 1980 e 1990. O daquela época oferecia uma proposta real. O de agora surge como uma vingança. E uma vingança não oferece um horizonte.

Folha: Em que sentido? 
GL: Se você compara com o que vivemos nos anos 1980 e 1990, com [Carlos] Menem na Argentina, com Fernando Henrique Cardoso e outras experiências daquela época, elas continham uma promessa de desenvolvimento possível. O Muro de Berlim havia caído, e esses projetos apontavam para uma esperança de bem-estar. Esse neoliberalismo 2.0 não tem nada disso – ele é vazio e vem como uma resposta. Surge com a ideia de que é preciso acabar com os esquerdistas que teriam roubado muito dinheiro, etc. Só que você não constrói um horizonte apenas com um desejo de vingança. Outro limite desse neoliberalismo é o desejo de promover livre mercado num mundo cada vez mais protecionista. Ou seja, criou um curto-circuito de narrativa ideológica. Porque hoje os grandes parceiros para comercializar são China e Rússia, e não os EUA.

Folha: E esse curto-circuito tem que consequências? 
GL: O de causar confusão, caos, um “salve-se quem puder” em que cada país passa a buscar seu destino, e já não há ortodoxia. Aquele grande caminho consensual pelo qual diziam que todos teriam de transitar já não existe mais. Por isso creio que é um momento muito complicado para os projetos neoliberais.

Folha: As urnas passarão a demonstrar isso? 
GL: Cada país tem seu tempo. Na Argentina já está acontecendo. O fato é que, ao não gerar hegemonia verdadeira, esse novo neoliberalismo faz com que a sociedade acumule expectativas e ilusões, mas as respostas que surgem não são suficientes. São de curto prazo. Aí, sim, vem o voto de castigo.

Folha: O que deu certo na Bolívia? 
GL: Começamos por buscar o que funcionava para nós. Nossa experiência ensina ao mundo que cada país tem de encontrar seu próprio horizonte a partir de suas necessidades. Onde é preciso mercado, chamamos o mercado. Onde falta Estado, entramos com Estado. Se convém exportar mais numa área, exportamos. Se noutra precisamos de proteção, o Estado oferece proteção. Somos uma heterodoxia muito prática que se propõe a enfrentar um mundo caótico, bastante conscientes de que este perdeu seus horizontes.

Folha: E como essa esquerda pragmática se define ideologicamente? 
GL: Somos socialistas, mas vivemos no contexto deste mundo complexo. Não acreditamos em quem quer reviver o neoliberalismo dos anos 1980 e 1990, assim como não acreditamos, de maneira nenhuma, nos esquerdistas que, quando caiu o Muro de Berlim, sonhavam em regressar aos anos 1940 e 1950. Isso não dá, esse tipo de esquerda está perdida. Mas há uma geração atual. Nós, aqui, não carregamos o caixão da União Soviética conosco. Somos socialistas, mas sabemos nos localizar no mundo e atuar em função de necessidades e possibilidades, e não de ortodoxias que podem simplesmente nos levar à catástrofe.

Folha: Como seguir a média boliviana de crescimento de 4% ao ano num mundo em que a economia desacelera? 
GL: A Bolívia é o único país do continente em que a população que vive da agricultura não diminuiu. Ao contrário, está em expansão. O desafio é levar mais tecnologia a essa agricultura em setores mais afastados. E estamos diversificando exportações, passamos a exportar quinoa e soja para a China, e internamente exploramos o etanol e o biodiesel, o que somente com o mercado interno nos permitirá fazer planos para os próximos 15 anos.

Folha: Em 2015, a Bolívia era campeã na região no ranking de violência doméstica. Em 2019, continua sendo. Por que não melhorou? 
GL: É necessária uma mudança mais profunda da sociedade. Porque o governo fez sua parte. Tipificamos o feminicídio, abrimos delegacias para a mulher. Porém, o que ocorre é que o processo de ampliação dos direitos das mulheres é irreversível. Porém, esse avanço em direitos, no mundo do trabalho, na independência ainda convive com uma estrutura familiar muito conservadora, com uma herança cultural e colonial muito patriarcalista. Uma parte das famílias está se modernizando, mas ainda há a família tradicional em que o trabalho da mulher é servil, e a manutenção disso é feita por meio da violência. É um problema que esperamos resolver no próximo mandato.