Maria C. Fernandes: Um retrato do desemprego no Brasil de Bolsonaro 

Ivana Taís tem 21 anos, duas filhas e ensino médio incompleto. Deixou o Maranhão há três meses porque trabalhava numa padaria das 7h às 19h para ganhar R$ 300 por mês. Na segunda-feira, chegou às 23h no mutirão do emprego promovido pelo Sindicato dos Comerciários de São Paulo.

Por Maria Cristina Fernandes*

Mutirão

Como a distribuição de senhas só começaria na manhã seguinte, Ivana passou a noite ao relento com o marido, também desempregado. Não tinha conseguido pregar os olhos, amanhecidos com sinais de irritação. Quando achou que fossem dormir, houve uma tentativa de assalto na fila: “Foi os disciplina que botaram o ladrão pra correr”.

Cercada por gradis baixos, a fila invade o Vale do Anhangabaú e pode ser vista pelos visitantes da vizinha Fundação Fernando Henrique Cardoso. De madrugada, só moradores de rua, trombadinhas e traficantes dividem aquele espaço. São a estes últimos que Ivana chama de ‘os disciplina’. Coube aos seguranças do sindicato negociar uma trégua. Ali estavam pais e mães de família e, se a polícia baixasse, o rolo poderia terminar em tragédia.

A madrugada do Anhangabaú demonstra que um dos motivos pelos quais a corda não arrebenta nesse extrato de 12,6 milhões de desempregados do país é o frágil – e atemorizante – equilíbrio entre gatunos, traficantes, seguranças privados e policiais. Neste cabo de guerra, o que pode arrebentar é o futuro do presidente da República.

Não é uma maioria de bolsonaristas que se acotovela na fila, mas entre seus eleitores, prevalece o arrependimento. É o caso do motorista aposentado José Augusto de Lima, 70 anos, o primeiro a chegar, às 14h da véspera do atendimento. Com a ajuda da mulher, aposentada e manicure, paga os R$ 1,2 mil do aluguel e das taxas do apartamento em que mora no Centro, e os R$ 500 do empréstimo consignado.

Depois de votar no PT três vezes consecutivas, foi de Jair Bolsonaro em 2018, a pedido de um de seus três filhos, mas não vê nenhuma de suas promessas se confirmar. Além da mulher continuar a andar na rua apavorada, acha que venezuelanos e haitianos tomam os poucos empregos que há. Só vê alguma melhoria na corrupção, que não enche barriga. “Acho que ele não termina o mandato”, conclui.

José Celestino Marques dos Santos, 63 anos, que chegou à fila 20 minutos depois, mora em Barueri, na Região Metropolitana, e também é motorista autônomo. Trabalha com aplicativos, mas diz que só vale a pena se rodar à noite. Prefere um fixo para completar a aposentadoria de R$ 2,4 mil mas se desanima ante a exigência de 48 anos como teto de parte das 42 empresas do mutirão.

Seu testemunho desacredita a tese de que haveria fila num guichê para trabalho escravo. Não aceita que reforma trabalhista gere emprego, ficou desgostoso com a reforma da Previdência e, se tivesse FGTS, não o sacaria – “não dá pra nada”. Ficou desacreditado com a demissão do cunhado de uma indústria de eletrônicos na semana passada, quando já deveriam estar sendo formados os estoques para o Natal.

Ao contrário de José Augusto, porém, acha que Bolsonaro disputará a reeleição, só que sem seu voto – “ele é machista”. Eleitor de Geraldo Alckmin, está de olho no governador João Doria, também do PSDB.

Ao contrário de José Augusto e Celestino, Bruno Santana, 19 anos, morador de Itaquera, na zona leste, nunca teve carteira assinada. Fazia bico em choperia e agora entrega pizza. Recebe R$ 30 pelo plantão de seis horas, mais R$ 2,50 por viagem. Divide metade do faturamento com o dono da moto e leva o resto para ajudar o pai, motorista de ônibus aposentado com um salário-mínimo, a pagar o aluguel de R$ 750.

Como tatuou uma Nossa Senhora no pescoço, acha que matou o sonho de ser bombeiro “Quero ser o que der pra minha família ter um futuro melhor”. Vê melhoria na segurança pública e está mais esperançoso de arrumar um emprego, mas não é eleitor de Bolsonaro “Os posto de saúde tá lotado e a educação só piora, Lula fez mais pelo povo”.

Muitos dos desempregados da fila portam conta de luz de endereços de amigos. A “geolocalização” é um dos motivos para a rejeição de candidatos. Condução, absenteísmo e impacto na produtividade somam o “custo periferia”. O outro é o comportamento do candidato, ora introvertido, ora desleixado, e, por fim, a experiência.

A maioria das empresas do mutirão é do varejo, setor cuja atividade foi medida pela “Semana do Brasil”, promoção promovida sob estímulo oficial. O aumento de vendas medido pela Associação Comercial foi 8,5% superior ao do mesmo período de 2018, desempenho semelhante ao da promoção de novembro, já apelidada de “black fraude”.

Rithieline Rodrigues, de 24 anos, tem experiência de cozinha, mas nunca tentou emprego na área porque “exigem cursos caros”. Operadora de telemarketing, está há quatro meses desempregada. O marido é auxiliar de limpeza. Ganha R$ 1,2 mil e paga aluguel de R$ 800.

Ela ajuda com bolos no pote. Gasta R$ 100 para fazer 50 e vende cada um a R$ 5. Votou em Alckmin e anulou no segundo turno. Só votará em Bolsonaro “se ele fizer alguma coisa”.

Assim como Rithieline, Letícia Silva, de 34 anos, quatro filhos, é da Assembleia de Deus, mas não votou nem pretende votar em Bolsonaro. “Ele menospreza todo mundo e ainda fala em Deus?”. Pela terceira vez num mutirão, é outra a desacreditar a tese de que guichê de trabalho escravo lotaria. Pediu demissão do emprego numa central de distribuição de medicamentos.

Do salário de R$ 1,2 mil, sobravam, depois dos descontos, R$ 800. Não dava nem para comprar o remédio que separava. O marido trabalhava como conferente, sem registro, e ganhava R$ 5 por hora, um sexto da vigente nos Estados Unidos. De madrugada, uma van o largava na rua, sem ônibus. Em três meses, tirou R$ 2 mil. Mesária em 2018, não se animou a votar, mas diz que Lula é perseguido por um “deslize”: “Bolsonaro tira de quem não tem. Só tem melhoria pra família dele”.

Com curso de logística e informática, acalenta o sonho de fazer faculdade de Farmácia, mas acha que agora vai ter que esperar: “Nem quem tem estudo tá conseguindo emprego. Eles agora não registram porque dizem que pode não dar certo e aí não suja a carteira. Mas a gente não depende deles. Me viro com faxina e bolo pra vender. São eles que dependem de nós”.