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Claudio Daniel: A poesia mais rara que as panteras e os anjos

O Amor Embebedou as Feras, terceiro livro da jovem autora curitibana Priscila Merizzio, publicado pela editora Kotter, apresenta poemas que subvertem os temas tradicionais da poesia lírica com humor e ironia, numa dicção criativa e irreverente.

Por Claudio Daniel

Priscila Merizzio

Todo labirinto apresenta enigmas a serem decifrados, armadilhas a serem evitadas, rotas falsas que podem fazer o peregrino perder-se em sua jornada. Um labirinto é espaço para a confusão, a desorientação, mas trilhá-lo até o fim e atingir o seu centro representa conquistar a sabedoria. Labirintos são jogos mentais: não basta a inteligência para compreender os seus sinais – é necessário o máximo da percepção subjetiva do peregrino para que ele prossiga até o final do percurso. Labirintos são representações geométricas do homem e do mundo e podem ser construídos em pedra, madeira e até mesmo assumir a forma de labirintos vegetais, em jardins planejados conforme misteriosa arquitetura. Há livros que também são labirintos: livros que o leitor deve percorrer escolhendo um trajeto possível entre incontáveis outros trajetos concebíveis, correndo sempre o risco de perder-se, sem contar com o fio de Ariadne para orientar-se em sua caminhada. O livro de Priscila Merizzio é um labirinto, e como tal é espaço de jogo, fascínio, iniciação, beleza e perigo.

O leitor não deve iniciar a sua perambulação pensando em um trajeto linear, unicursivo, como os antigos labirintos construídos pelas civilizações agrárias, em forma de espiral, que previam uma só rota. Estamos aqui trilhando numa construção multicursiva, onde cada leitor-peregrino poderá fazer a sua escolha no campo indefinido das possibilidades e virtualidades do texto que se apresenta a nossos olhos como uma construção de arquitetura plurívoca. No final da leitura, talvez o caminhante descubra que não havia um centro a ser alcançado, pois ele estava em toda parte e em lugar algum. Tudo o que existe é o percurso, a viagem e o encantamento dos sentidos.

O livro tem início com um dístico, no estilo enigmático das pitonisas e dos fragmentos dos filósofos pré-socráticos: “O amor embebedou as feras / elas esmagaram ossos pensando que isto é puro”. Nesta breve composição, aparecem algumas das chaves para a decifração do jogo poético proposto pela autora: o “desregramento razoável dos sentidos” de Rimbaud, o poeta do barco bêbado, a busca da pureza de expressão e o risco inevitável da dor. A sombra do poeta simbolista francês aparece em diversas composições deste livro, como a silhueta do estranho primo que escondemos no sótão, para que ele não assuste as visitas na sala com os seus três braços. Assim, percorremos as galerias do labirinto e encontramos um “ventre rasgado por garras” e um “monstro condenado à própria companhia”, “gestos de revólver atrás do buquê de flores” e um “homem bélico que perverte animais”. Porém, a dicção da autora, múltipla, não se resume a essas – e outras – imagens expressivas, que recordam, por vezes, o reflexo distorcido de alguém numa sala de espelhos, num parque de diversões.

A dimensão do humor está presente, embora na forma do humor negro: “No próximo ano Rhett Butler irá voltar / a mansão ainda estará coberta de tapetes, cortinas / e tecidos vermelhos. Os criados terão se entrevado / e suas peles serão pálidas / no lugar do belo jardim, um pântano de gárgulas / os vitrais sujos dos cocôs dos pombos / ele encontrará uma Scarlett com trajes de enfermeira / de quando ela cuidou dos soldados vindos da guerra / a encontrará alimentando-se parcamente / de membros amputados: ela jurou / não passar fome outra vez”, composição que nos faz pensar em Manuel Bandeira ou Oswald de Andrade, pelo recorte ready made de personagens do cinema norte-americano, inseridos em outra paisagem e roteiro.

Em outra peça, de concisão modernista, Priscila Merizzio dispara: “Nas montanhas de seu peito sua clavícula me ama num romantismo alemão”, conjugando amor e humor, conforme a melhor tradição oswaldiana – presente também na sequência de poemas-pílula, que antecedem as composições em prosa poética, no final do volume. A reflexão existencial, um dos motivos condutores desta coleção de poemas, não escorrega na facilidade do discurso sentimental, mas comparece em pleno vigor semântico e fanopaico, como nesta peça: “Quero destituir o medo / esqueço que ele é uma farinha / ladeando as artérias / borrando os olhos, criando / sombras e pontos-cegos / está na água que bebo / no chilrear das aves de domingo / está intrínseco em tudo / exceto nas florestas. / o medo tem medo das florestas / pois nas copas das árvores / está a mão de Deus”.

A expressão subjetiva entra em cena usando todos os recursos a que tem direito, numa luxúria por vezes quase barroca: “é a língua do tigre que vai ao encontro da pata / é a língua da tigresa que limpa a cria recém-nascida / e a própria vulva”; “a morte é suja; não a esqueço / nossos corpos se decompõem velozes / mas fora daqui sou outra mulher, distinta / desta figura tétrica, abraçada a mortalhas / tiro e me retiro de labirintos / fulgurante”. A presença do feminino é constante nessa lírica de múltiplas camadas temáticas e formais; a mãe, a amante, a louca, a bruxa, a lasciva, todas as faces reluzentes de Lilith despem-se em pequenas joias verbais, surpreendendo o leitor ao andar “nua debaixo do vestido / respirando debaixo das saias, pois de sua intimidade saiu outra vida / e a bexiga próxima do útero já não faz mais sentido / o estômago ardente já não faz mais sentido / só seu coração de mendiga comido pela lepra materna”.


Capa do livro O Amor Embebedou as Feras, de Priscila Merizzio

Em outra peça, de dicção menos expressionista e mais conversacional, Priscila Merizzio escreve: “O professor de italiano te projetou musa / você recusou. Pois, as musas são xícaras bonitas que perdem a utilidade com o tempo / em vez da língua dos amantes, fugiu sobre as águas / sua mãe morreu nas águas. Ela deu pedras / aos pássaros. Pesos mortos, colocou-os nos / bolsos e mergulhou batendo as barbatanasas / Junie, você só quer ser marítima / os homens que te amam sentem ciúme de suas tragédias de sua auréola triste: / elas te dão o aval de toda grande poeta / as panteras são mais raras do que os anjos”. Haveria muito mais o que dizer dessa singular construção labiríntica de versos, como a presença constante de animais, as referências mágicas, mitológicas, a subversão da anatomia, suplantada pelas formas teratológicas, mas essas são apenas algumas das pistas que deixarei para que você, leitor, persiga em sua aventura no labirinto poético de Priscila Merizzio.

* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.