Hoje, aniversário de Lupicínio Rodrigues, quem me chamou atenção para o seu dia foi o Google. Abri o site de pesquisa e lá estava um dos maiores compositores brasileiros numa imagem que chamam de “doodle”, um recurso que se usa para os homenageados do dia. Muito bem.
Por Urariano Mota*
Publicado 16/09/2019 15:12 | Editado 13/12/2019 03:29
Eu não queria abusar do privilégio de publicar no Prosa, Poesia e Arte do Vermelho, que muitas vezes tem sido mais que generoso com o que escrevo. Mas não podia deixar passar em branco o 16 de setembro de Lupicínio Rodrigues, uma das maiores referências da música popular brasileira. Então procurei artigos anteriores, e descobri um texto antigo sobre o qual teria que mudar parágrafos, frases, até mesmo reescrevê-lo. O autor e o mundo mudaram. Mas não há tempo suficiente agora para novo artigo. Então recupero antigas linhas, na esperança de que a oportunidade do dia me perdoe alguns erros. O texto sobreviverá? Ele vem a seguir.
As composições de Lupicínio Rodrigues representam uma das coisas mais ternas e violentas da música popular brasileira. Como ele consegue ser terno e violento ao mesmo tempo? Não é simples. Sobre um terreno de relações desiguais, do homem imperando sobre a mulher, de relações portanto violentas, Lupicínio constrói um mundo cheio de terna compreensão para aquele que ama. E que sofre, quando rejeitado, sem abdicar jamais de uma posição que se deseja altiva.
Observe-se: o amante jogado a um canto por outros, é afinal procurado pela mulher que o abandonou. Ela parece chegar de mansinho, meio envergonhada, sem ousar cruzar a porta da casa que não mais é sua. Para entrar, ela espera e precisa do convite do soberano, do soberano que, durante o tempo de abandono que tomou, assistiu de camarote às lições que a ingrata levou. Até não parece o recebimento de uma amorável fugida? Coisa muito terna, mas desigual, em planos diferentes, pois a casa é dele, e ela é quem o procura.
Então ele se faz paternal, concede, diz-lhe que entre, que a casa é sua, suaviza com um "meu amor", para lhe mostrar que não é uma estranha. Poderia ainda dizer-lhe: "sei que erraste, mas como sou um bom pai, não insistirei nos teus erros".
À primeira vista há o prazer da vitória sobre quem o magoou, quase uma vingança. Por trás, no entanto, há um queixume de quem se acha ter amargado uma injusta solidão. Como é homem, não chora, nem se deixa abrir numa queixa: recebe-a de volta, soberanamente. Recebe-a como quem retoma um bem roubado. O detalhe que surge e toma corpo neste discurso de senhor é a cadeira vazia. Ninguém a havia ocupado. Durante toda sua ausência ela se fez presente naquela cadeira. Este detalhe trai.
E sentindo-se descoberto por esta fraqueza, eis que volta o senhor com um novo embuste: proclama, altaneiro, que não lhe dará carinho nem afeto. Chega a ser cômico. Há ternura demais nessa vingança de cadeira vazia e jejum de afeto.
Evidentemente, Lupicínio Rodrigues não foi o inventor da dor de cotovelo. Mas dele pode-se dizer que pôs muita dignidade num sentimento amesquinhado em penosos bolerões. Essa dor causada, tão mal vivida em músicas que do sofrimento de quem ainda ama só veem a rabugenta lamúria, ganhou em Lupicínio Rodrigues uma nova luz.
Normalmente as canções do gênero, quando não prometem à infiel um passional desenlace, mostram um pobre desgraçado arrastando-se aos pés da amada, pleiteando um amor impossível. Em Lupicínio Rodrigues, não. A relação amorosa já existiu, não mais existe, ponto comum da dor de cotovelo. Mas o que acontece? Ele narra o próprio sofrimento, retrata o estado em que se encontra, sem que esse retrato nos leve ao sentimento da piedade.
Enquanto nos outros sofredores, por eles só sentimos pena, na mágoa expressa de Lupicínio sentimos uma profunda empatia, casada a uma certa admiração por seu torturante heroísmo. Ele jamais é o coitado, embora sofra.
Ele possui o talento da expressão mais rude, bruta, direta. Não há rodeios, falsas sutilezas, o sabor encantatório de certas palavras tidas como poéticas. Há o verso definidor de uma situação pressentida por todos, mas não ainda conhecida, porque ainda não enunciada: "Não consigo dormir sem teu braço, pois meu corpo está acostumado".
E há o grito de dor, que é o remédio certo para a aflição: "Volta". Sem essa curta palavra, no ápice da canção, é de se observar que ele corria o risco de cair no banal. Ou seja, ele não é apenas o poeta que tem um mundo de visões agitando-se dentro de si, e que faz da composição um decalque desse rebuliço. Lupicínio é um artesão que põe ordem no caos das visões que deseja ver conhecidas. Daí a ilusão do "lugar-comum incomum". Lupicínio sabe que todas as palavras já foram ditas, que todas elas, em si, são lugares-comuns, mas que a verdade corporificada nas palavras é absolutamente original.
Nessa música, de 1947, ele se expõe numa situação vulgarizada até o riso, a do homem que é testemunha do ato de sua substituição por outro. Lupicínio nem dá de ombros como no moderno sentimento, nem toma ares de vítima. Ele nos convida para um mergulho no seu problema, interrogando-nos se sabemos o que é ter um amor, se sabemos, e se por isso já passamos, como é duro encontrá-lo em outros braços que não os nossos. A situação é bem velha. Velha não é a coragem de confessar essa experiência, ou, se confessa, o evitar a queda na vala comum do ridículo.
O que faz Lupicínio? Com interrogações a nós dirigidas, rasga de imediato o nosso confortável papel de assistentes, porque o conteúdo das interrogações é saber se já tivemos um amor. Quem não? De voz embargada reconhecemos nele o nosso forçado intérprete.
E aqui retornamos ao ponto de partida. O amante desprezado regozija-se da má sorte que acompanha os passos daquela que o deixou. Vingança? Ou somente desfrute perverso da paixão que fica no lugar do antigo amor? O nome mais apropriado deveria ser castigo, imposto pelo amante não correspondido. Coisa de soberano. Um castigo imposto mediunicamente à distância. Um castigo em termos, porque não deve destruir o objeto amado.
Na verdade, a cadeira ainda está vazia. O orgulhosos médium aguarda-a, soberanamente. Superiormente compreensivo.
Tudo mudou. Mas a imensa arte de Lupicinio Rodrigues continua onde houver sensibilidade para uma grande canção.
* Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances Soledad no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude. É colunista do Vermelho e colaborador do Prosa, Poesia e Arte.